| 20 Junho 2016
Artigos - Cultura
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Pessoas com convicções políticas e religiosas antagónicas podiam ter um elevado grau de convivência e até de amizade. Podiam falar de artes, de gastronomia, de relações humanas, de História e assim por diante. Podiam até falar de política e de religião desde que respeitassem as convicções alheias e não entrassem em provocações desnecessárias. Cheguei a ver militantes comunistas recordando a sua experiência do Partido para tentar compreender, por analogia, certos fenómenos que ocorriam na Igreja Católica. Não era preciso explicar a ninguém que a experiência do outro tinha sempre alguma analogia com a nossa, porque todos somos seres humanos e vivemos no mesmo mundo.
Mas hoje esta convivência natural entre os seres humanos é cada vez mais impossível. Os indivíduos formatados pela guerra cultural são pequenos nazis mergulhados na sua bolha de convicções, reacções e frases feitas. Só é possível conviver com eles concordando com tudo o que eles dizem, ou seja, não há mais diálogo, só há ressonância.
Não podemos falar com eles sobre artes, porque para eles não existe o ‘belo’, só existem convenções e acham que a verdadeira arte é a destruição metódica da tradição artística. Não é possível falar sobre gastronomia porque vêm os alimentos exclusivamente em termos de propriedades nutritivas ou começam a falar no sofrimento dos animais ou da “alimentação saudável”.
Não dá para falar de relações humanas porque eles não acreditam que exista homem e mulher, nem acreditam na alma humana, acreditam apenas em papéis sociais, no animal humano como algo condicionado pelo ambiente ou como uma coisa determinada pela evolução. Não é possível falar de História ou de filosofia porque não acreditam que exista alguma verdade (dos factos ou da sua essência) a desvelar e acham que todo o discurso é apenas uma tentativa de influenciar o outro, porque é assim que eles mesmos usam a palavra.
Se falarmos de religião e política, aí o antagonismo é tal que quem tem um posicionamento contrário é como se deixasse de pertencer à espécie humana. Aliás, uma das características dos indivíduos mais “evoluídos” é terem redescoberto a crença primitiva de que os indivíduos dos outros grupos não são seres humanos. Fora da sua área de crença, só é possível falar com eles a respeito de matérias científicas, usando linguagem técnica rigorosa mas sem ter qualquer envolvimento pessoal com aquilo.
Os sujeitos criados na ‘tolerância’ e na ideia de que ‘é proibido proibir’ tornaram-se totalmente fechados ao outro. Não é que eles sejam realmente intolerantes, até porque a intolerância é uma atitude legítima em muitas situações.
Eles são, na realidade, pessoas amputadas que não conseguem pensar ou sentir nada fora do covil onde se refugiaram. Eles são os orgulhosos prisioneiros na caverna de Platão, mas a imagem quase que perde o seu simbolismo e torna-se aterradoramente literal, porque os seus próprios movimentos físicos estão cada vez mais limitados e a sua visão pouco mais abarca do que sombras. Só existem palavras e o seu eco nas paredes da caverna.
Imagem: Francisco de Goya (1746 - 1828) , Os Caprichos, gravura 42, "Tu que não podes ".
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