ZERO HORA - RS - 29-30/10
Tem sido comum entre nós que grupos políticos em disputa atribuam apelidos uns aos outros. A versão mais atualizada desse hábito surgiu nas manifestações públicas a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Quem era a favor ganhou o designativo "coxinha". Quem era contra virou "mortadela".
Tem sido comum entre nós que grupos políticos em disputa atribuam apelidos uns aos outros. A versão mais atualizada desse hábito surgiu nas manifestações públicas a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Quem era a favor ganhou o designativo "coxinha". Quem era contra virou "mortadela".
Conquanto as coxinhas fossem meramente simbólicas e não
aparecessem fisicamente, a mortadela, essa sim, chegava em cestos,
servida com pão. Em torno desses sanduíches se comprimiam manifestantes
trazidos em ônibus para atuarem como figurantes nos eventos governistas.
Faziam lembrar os filmes épicos do cineasta norte-americano Cecil B.
DeMille, nos quais multidões eram contratadas para povoar a tela em
cenas que causavam grande impressão. Nas manifestações contra o
impeachment, quando a câmera dava um close, viam-se homens e mulheres
humildes, em camisetas vermelhas, atacando com disposição o prometido
sanduíche.
Não raro, alguém se infiltrava nessa multidão,
entrevistando-a e testando-a sobre suas convicções. As respostas, como
seria de se esperar, mostravam que a quase totalidade não tinha ideia
sobre a razão de ali estar. Embora muitos assistissem a essas cenas,
posteriormente exibidas nas redes sociais, como coisa jocosa,
tratava-se, na verdade, de algo constrangedor e triste. Triste e
constrangedor.
Como não se constranger ante a falsificação da cidadania?
Como não se entristecer quando seres humanos têm sua dignidade
rebaixada à condição de figurante de cidadão, ao preço de um sanduíche e
alguns vinténs, num ato presumivelmente político?
Nada contra quem foi
levado a esse nível de carência. Apenas dó e respeito. Mas tudo contra
quem se vale dessas pessoas e de suas precariedades para difundir uma
mensagem de araque em comícios com figurantes. Após tantos anos no
poder, precisam valer-se dos apelos da pobreza para atribuir vigor e
atrair adesão à falácia de que acabaram com ela.
Pobre pobreza,
sempre tão na ponta da língua e longe dos corações! Eleição após
eleição, governo após governo, com crescente vigor a partir do "Tudo
pelo social" do companheiro José Sarney, a pobreza ganhou o primeiro
plano da retórica eleitoral. Na prática, os resultados são tão escassos
quanto pode ser percebido tão logo se dissipa a algaravia dos discursos.
Tudo se passa como se o discurso fosse capaz de superar os fatos e a
autolouvação alterasse as estatísticas, proporcionasse emprego aos
desempregados, salário e renda aos devedores. E pão com mortadela a quem
tem fome. Sim, porque o pão com mortadela sumiu com o desinteresse
pelas massas de figurantes. A volta vem e os "calaveras" se secam,
ensinam os fronteiriços.
A economia nacional, que surfou sobre a
crise no mar da China compradora crendo que o céu seria sempre azul e a
brisa suave, se espatifou contra os rochedos da realidade. Era
inevitável. A casa foi assaltada. O poço secou. A responsabilidade
fiscal foi demitida das contas públicas.
As maiores empreiteiras no
Brasil abasteceram seus cofres diretamente do PIB nacional. A turma do
Pixuleco enricou como Tio Patinhas jamais imaginou. Com o dinheiro do
BNDES, o Brasil se transformou em mecenas ideológico de nossos satélites
ibero-americanos e africanos. Mas tudo foi feito, dizem-nos, por
incondicional amor aos pobres.
Pior do que isso. Agora, quando se
pretende reerguer o país e medidas de austeridade se impõem, retomam o
discurso da irresponsabilidade fiscal. Exigem que não se pague a dívida
que quintuplicaram, cobram que se baixe a taxa de juros que elevaram e
que o novo governo faça logo e faça bem, pela saúde e pela educação,
tudo que não foi feito em 13 anos. Por amor e em defesa dos pobres.
O
zelo pelos mais necessitados não é saliva de discurso. Antes de tudo é
criar condições para que as pessoas, elas mesmas, promovam seu
desenvolvimento humano e social. A pobreza, por si só, é uma chaga
nacional. Explorá-la politicamente, em nome dela, é perverso.
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