sexta-feira, 27 de maio de 2016

Discurso do Ministro José Serra por ocasião de transmissão do cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores, em 18 de maio de 2016

Deixe-me dizer de minha alegria em passar a integrar uma instituição de grande tradição e de marcada contribuição histórica ao nosso país. Deixe-me dizer também da satisfação em conviver com um corpo de funcionários de reconhecida competência e espírito público. Eu espero aqui transmitir algumas ideias essenciais a respeito da nova política externa brasileira. Tenho e terei, como sempre em minha vida pública, os olhos voltados para o futuro e não para os desacertos do passado.

Primeira diretriz:
A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor. Medidas que, em outros momentos, possam ter servido ao interesse nacional, quero dizer, podem não ser mais compatíveis com as novas realidades do país e com as profundas transformações em curso no cenário internacional.

Segunda diretriz:
Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações assumidas em tratados internacionais e também em respeito ao princípio de não-ingerência.

Terceira diretriz: 
O Brasil assumirá a especial responsabilidade que lhe cabe em matéria ambiental,  como detentor na Amazônia da maior floresta tropical do mundo, de uma das principais reservas de água doce e de biodiversidade do planeta, assim como de matriz energética limpa e renovável, a fim de desempenhar papel proativo e pioneiro nas negociações sobre mudança do clima e desenvolvimento sustentável. Lembro que, se fizermos bem a lição de casa, poderemos receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta, uma vez que o Brasil faz a diferença nessa matéria.

Quarta diretriz:  
Na ONU e em todos os foros globais e regionais a que pertence, o governo brasileiro desenvolverá ação construtiva em favor de soluções pacíficas e negociadas para os conflitos internacionais e de uma adequação de suas estruturas às novas realidades e desafios internacionais; ao mesmo tempo em que se empenhará para a superação dos fatores desencadeadores das frequentes crises financeiras e da recente tendência à desaceleração do comércio mundial. O comércio mundial está se contraindo a galope, eu diria.

Quinta diretriz:
O Brasil não mais restringirá sua liberdade e latitude de iniciativa por uma adesão exclusiva e paralisadora aos esforços multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como aconteceu desde a década passada, em detrimento dos interesses do país. Não há dúvida de que as negociações multilaterais da OMC são as únicas que poderiam efetivamente corrigir as distorções sistêmicas relevantes, como as que afetam o comércio de produtos agrícolas. Mas essas negociações, infelizmente, não vêm prosperando com a celeridade e a relevância necessárias, e o Brasil, agarrado com exclusividade a elas, manteve-se à margem da multiplicação de acordos bilaterais de livre comércio. O multilateralismo que não aconteceu prejudicou o bilateralismo que aconteceu em todo o mundo. Quase todo mundo investiu nessa multiplicação, menos nós. Precisamos e vamos vencer esse atraso e recuperar oportunidades perdidas.

Sexta diretriz:
Por isso mesmo, daremos início, junto com o Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, com a cobertura da CAMEX e em intensa consulta com diferentes setores produtivos, a um acelerado processo de negociações comerciais, para abrir mercados para as nossas exportações e criar empregos para os nossos trabalhadores, utilizando pragmaticamente a vantagem do acesso ao nosso grande mercado interno como instrumento de obtenção de concessões negociadas na base da reciprocidade equilibrada. Nada seria mais equivocado, errôneo, nesta fase do desenvolvimento brasileiro, do que fazer concessões sem reciprocidade. Não tem sentido.

Sétima diretriz:
Um dos principais focos de nossa ação diplomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes para a reorganização da política e da economia. Junto com os demais parceiros, precisamos renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objetivo de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar, de promover uma prosperidade compartilhada e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia, mais o México. Como disse Enrique Iglesias, muito bem observado, não podemos assistir impassíveis à renovação de uma espécie de Tratado de Tordesilhas, que aprofundaria a separação entre o leste e o oeste do continente sul-americano.  Em relação ao México, será prioritário aproveitar plenamente o enorme potencial de complementaridade existente entre nossas economias e hoje das nossas visões internacionais.

Oitava diretriz:
Vamos ampliar o intercâmbio com parceiros tradicionais, como a Europa, os Estados Unidos e o Japão. A troca de ofertas entre o Mercosul e a União Europeia será o ponto de partida para avançar na conclusão de um acordo comercial que promova maior expansão de comercio e de investimentos recíprocos, sem prejuízo aos legítimos interesses de diversos setores produtivos brasileiros. Como disse o ministro Mauro, houve a troca de ofertas, nós vamos agora examinar quais são as ofertas da União Europeia. Com os Estados Unidos, nós confiamos em soluções práticas de curto prazo para a remoção de barreiras não-tarifárias, que são, no mundo de hoje, as essenciais. No mundo de hoje não se protege, do ponto de vista comercial, com tarifas. Se protege com barreiras não-tarifárias. Quero dizer que o Brasil nesse sentido é o mais aberto do mundo. Nós não temos nenhuma barreira não-tarifária, ao contrário de todos os outros que se apresentam como campeões do livre comércio. Com os Estados Unidos, confiamos em soluções práticas de curto prazo, eu repito, para a remoção de barreiras não-tarifárias,  e de regulação que entorpecem o intercâmbio. Daremos igualmente ênfase às imensas possibilidades de cooperação em energia, meio ambiente, ciência, tecnologia e educação.

Nona diretriz:
Será prioritária a relação com parceiros novos na Ásia, em particular a China, este grande fenômeno econômico do século XXI, e a Índia. Estaremos empenhados igualmente em atualizar o intercâmbio com a África, o grande vizinho do outro lado do Atlântico. Não pode esta relação restringir-se a laços fraternos do passado e às correspondências culturais, mas, sobretudo, forjar parcerias concretas no presente e para o futuro. Ao contrário do que se procurou difundir entre nós, a África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos. Nesse sentido, a solidariedade estreita e pragmática para com os países do Sul do planeta terra continuará a ser uma diretriz essencial da diplomacia brasileira. Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos. É importante ter a noção clara de que os diferentes eixos de relacionamento do Brasil com o mundo não são contraditórios nem excludentes, sobretudo dado o tamanho da nossa nação. Um país do tamanho do Brasil não escolhe ou repele parcerias, busca-as todas com intensidade, inspirado no seu interesse nacional. Vamos também aproveitar as oportunidades oferecidas pelos foros inter-regionais com outros países em desenvolvimento, como por exemplo os BRICS, para acelerar intercâmbios comerciais, investimentos e compartilhamento de experiências. E, com sentido de pragmatismo, daremos atenção aos mecanismos de articulação com a África e com os países árabes.

Décima diretriz:
Nas políticas de comércio exterior, o governo terá sempre presente a advertência que vem da boa análise econômica, apoiada em ampla e sólida consulta com os setores produtivos. É ilusório supor que acordos de livre comércio signifiquem necessariamente a ampliação automática e sustentada das exportações. Só há um fator que garante esse aumento de forma duradoura: o aumento constante da produtividade e da competitividade. Se alguém acha que basta fazer um acordo e abrir, que isso é condição necessária suficiente, está enganado. É preciso investir no aumento constante da competitividade e da produtividade. Daí a ênfase que será dada à redução do custo Brasil, mediante a eliminação das distorções tributárias que encarecem as vendas ao exterior e a ampliação e modernização da infraestrutura por meio de parcerias com o setor privado, nacional e internacional. O custo Brasil hoje é da ordem de 25%, ou seja, uma mercadoria brasileira idêntica a uma mercadoria típica média dos países que são nossos parceiros comerciais, custa, por conta da tributação, dos custos financeiros, dos custos de infraestrutura, dos custos tributários, 25% a mais. Imagine-se o desafio que nós temos por diante. E apenas assumi o ministério, eu me dei conta, conversando com nosso embaixador na China, o Roberto Jaguaribe, do esforço de nossas embaixadas para atrair investimentos nestes setores básicos da economia. O Roberto estava trabalhando inclusive para seduzir os capitais chineses a virem ao Brasil, investir em parceria com o Estado brasileiro nas obras de infraestrutura. Esse esforço será multiplicado, tenho certeza, com sucesso.

Aqui encerro as diretrizes, mas se eu tivesse que  acrescentar uma a mais, me alongar, que valeria a pena se alongar, eu citaria uma que temos que cumprir, colaborando com os ministérios da Justiça, da Defesa e da Fazenda, no que se refere à Receita Federal: a proteção das fronteiras, hoje o lugar geométrico do desenvolvimento do crime organizado no Brasil, vamos ter isso claro, que se alimenta do contrabando de armas, contrabando de mercadorias, que é monumental, e do tráfico de drogas. Em especial, nos empenharemos em mobilizar a cooperação dos países vizinhos para uma ação conjunta contra essas práticas criminosas que tanto dano trazem ao nosso povo e à nossa economia.

Por último, não menos importante, quero reafirmar meu compromisso com as comunidades brasileiras no exterior e o bom funcionamento de nosso serviço consular. Continuaremos a dar atenção prioritária à garantia dos direitos dos cidadãos brasileiros, onde quer que eles estejam.

Dirijo-me agora ao corpo de funcionários do ministério. Nós vamos recuperar a capacidade de ação do Itamaraty, acreditem. Num período de grandes transformações e, por que não dizer, incertezas no cenário internacional e de promissoras mudanças internas, a nossa diplomacia, não tenho dúvida, terá de, gradualmente, atualizar-se e inovar, e até mesmo ousar, promovendo uma grande reforma modernizadora nos objetivos, métodos e técnicas de trabalho. A diplomacia do século XXI não pode repousar apenas na exuberância da retórica e no tom auto-laudatório dos comunicados conjuntos. Precisa ter objetivos claros e ser a um só tempo discurso político e resultado concreto.

Os diplomatas brasileiros despertam o orgulho do país e o respeito dos parceiros do Brasil no exterior. Quero valorizar a carreira diplomática, assim como as demais carreiras do serviço exterior. Respeitar o critério do mérito. Não discriminar em favor dos amigos do rei ou de correligionários de um partido político. Quero progressivamente retirar o Itamaraty da penúria de recursos em que foi deixado pela irresponsabilidade fiscal que dominou a economia brasileira nesta década. Quero reforçar a casa, e não enfraquecê-la. Vamos restaurar o orgulho das novas gerações em servir ao Itamaraty e, sobretudo, ao Brasil. A Casa será reforçada, e não enfraquecida. E no governo do presidente Temer, o Itamaraty volta ao núcleo central do governo.

Meu programa de ação corresponderá à minha tradição na vida pública: trabalhar muito, apresentar e receber ideias, tomar iniciativas, delegar responsabilidades, cobrar resultados e promover negociações efetivas, bem como ter presença marcante, longe de cumprir um calendário de visitas inócuas, para “cumprir tabela”.

Estes são compromissos que apresento hoje. Este é o convite que faço a todos os servidores desta Casa, a fim de que façamos um esforço comum para valorizar o Itamaraty e pelo êxito de um governo que enfrentará, como todos sabemos, desafios imensos, mas que criará, se Deus quiser, as condições para a reconstrução do sistema político, o fortalecimento da representatividade da nossa democracia e a volta do crescimento da produção e do emprego.


Muito obrigado, mãos à obra, vamos em frente.

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