10 de junho de 2016
Com o esvaziamento da experiência religiosa na “era secular”,
um tipo específico de esperança tem sido depositado na política. E quando a
política deixa de ser mediação do possível num mundo imperfeito e passa a ser
um instrumento redentor em busca da perfeição terrestre, abre-se o
caminho para regimes totalitários e assassinos.
Antes de se chegar ao estado totalitário, porém, ocorre todo
o esforço intelectual de legitimá-lo. É “a imaginação totalitária”, uma forma de
ver o mundo, e o tema do excelente livro de estreia de Francisco Razzo pela
editora Record. Martim Vasques da Cunha, autor de A Poeira da
Glória, vai direto ao ponto na orelha que escreveu para a obra:
Ninguém está a salvo de ser o carrasco de si mesmo e dos outros. Independente da ideologia que você defende, seja de esquerda, de direita ou de centro, Razzo nos mostra que sempre criamos as jaulas voluntárias que amamos e, o pior, idolatra-se a própria pantera que nos devorará em breve.
Trata-se também de um livro que, ao mesmo tempo em que
dialoga com William James e Eric Voegelin, mostra a importância de se estudar
um filósofo brasileiro como Paulo Eduardo Arantes ou então de saber melhor o
que *não* pensa alguém como Vladimir Safatle. E faz isso sem impor a sua
própria visão sobre o mundo; ele apenas fala sobre a realidade de maneira
desapaixonada.
Razzo nos leva a uma reflexão profunda acerca de nossos
pensamentos, nossa visão de mundo e ideologia, e faz tudo isso “com o rigor de
um scholar e a força argumentativa de um polemista”. Apesar da rica
bibliografia e das fartas citações, com ênfase em pensadores como William
James, Irving Babbit e Michael Oakeshott, o autor consegue um resultado
digerível para o público leigo em filosofia.
Todo o esforço de Razzo apela à nossa razão, mas com a
premissa básica de que devemos usá-la para reconhecer seus próprios limites.
“As atitudes políticas derivam muito mais das expectativas produzidas pela
força do imaginário do que pelo ordenamento prudente da razão”, diz. Ainda
assim, como escreve o autor, essa imaginação totalitária deriva de uma crença
na infalibilidade da razão:
Todas as tentativas de superar o pluralismo objetivo das
relações sociais, dado como fato incontornável e incomensurável, não
passaram de um atentado da razão que se entregou eroticamente
às promessas da imaginação de um final feliz. Na modernidade não houve
o eclipse da razão; houve, pelo contrário, o mergulho profundo da
razão na luz que brotava de si mesma.
Como resumiu com ironia Karl Kraus: “Refreia as tuas
paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão”. Quando
se está imbuído de uma crença escatológica, supostamente racional ou
científica, quando se age em nome da “salvação da Humanidade”, os indivíduos de
carne e osso se tornam irrelevantes por um processo mental. Todo o
sofrimento causado a alguém passa a ser justificado em nome dessa Utopia. O
crente político está sempre mergulhado em sua “certeza”, e disposto a tudo para
levar seu projeto purificador adiante.
A singularidade do outro diante de si
desaparece. São todos meios sacrificáveis para seu nobre fim.
As abstrações coletivistas servem de escudo contra o real sofrimento imposto a
seres humanos. O raciocínio turvado, dominado por paixões, elimina os freios
éticos na mente. O próximo passo é eliminar pessoas. “O ímpeto que move e
direciona a ação de um intelectual ideologicamente engajado não leva em
consideração um homem de carne e osso e os dilemas de sua vida interior, mas
uma ideia geral de homem”, escreve Razzo.
Num mundo cheio de “som e fúria”, sem sentido, sem
esperança, desprovido de Deus, construímos narrativas que servem como
alternativa ao que o mundo natural nos oferece. “A imaginação consiste na
condição de possibilidade dessa fuga”, explica. Não há mais que se aceitar os
velhos limites. Agora podemos criar fantasias, mundos imaginários em que tudo fará
sentido. E essa ideia tentadora, colocada em prática, leva ao totalitarismo.
Minha infelicidade, minha angústia, meus medos, tudo isso
gera a necessidade de explicar tais fracassos como responsabilidade de
terceiros, de alguém. É o “sistema”, a “sociedade”, o “capitalismo” que não me
permitem viver nessa harmonia plena e total. A política passa a ser vista,
então, como o canal para consertar isso, para buscar esse mundo perfeito aqui e
agora.
Surge, então, a religião política, uma seita
ideológica que enxerga no estado uma espécie de deus laico da modernidade.
Qualquer humildade epistemológica é deixada de lado, toda consciência de nossos
limites cognitivos é abandonada, e em seu lugar vem a certeza de se encontrar
do lado certo da Histórica, como o detentor da Verdade absoluta. É tudo
tão óbvio para mim! Tem que ser para os demais também.
O tipo de temperamento acaba sendo fundamental para atrair
adeptos dessa forma de ver o mundo. Por isso Razzo insiste que não é uma exclusividade
da esquerda ou da direita, e sim uma mentalidade que pode abranger todos os
espectros ideológicos. A imaginação totalitária seduz aquele perfil monista,
que rejeita a pluralidade, que não convive bem com as imperfeições e os limites
da vida real. O fascismo, o nazismo, o comunismo: todos são exemplos claros do
fenômeno.
“A política, entendida a partir dos seus devidos limites,
deve significar justamente a arte de mundos possíveis em detrimento da
construção imaginária de mundos ideais e nostálgicos”, diz Razzo. Mas o
totalitário não suporta isso. Ele quer regressar a um passado idílico ou chegar
a um futuro utópico. O estado deixa de ser um ente fiscalizador, formado por
humanos imperfeitos, e passa a ser “moralizador, estético e salvador”.
A condição humana é dada, mas os totalitários não admitem
isso. Adotam como premissa uma plasticidade infinita de nossa natureza,
defendem o mito do “bom selvagem”, pregam a “engenharia social” como mecanismo
de criação do “novo homem” e da “nova sociedade”. Mas, como lembra Razzo,
“nossa grandeza está contida no reconhecimento sincero da nossa própria
miséria”.
Para o totalitário, a política não é mais um meio, e sim o
fim em si. Seu desejo último é “glorificar o poder do Estado como detentor do
monopólio não do uso legítimo da violência, mas do monopólio simbólico da
verdade absoluta e da imortalidade, portanto, da experiência última da ordem
final e, consequentemente, da decisão sobre a vida e a morte”. O totalitário
pretende substituir Deus.
E eis o que esse tipo de mentalidade produz: a legitimização
da violência, pois redentora. É fruto de uma perversidade, trata-se de
uma violência deliberada, calculada, projetada e intelectualmente
legitimada. “O homem sucumbe ao atentado contra sua própria humanidade: a
violência com conhecimento de causa a fim de transformar a própria natureza,
superá-la em sua insuficiente fraqueza”.
Como exemplos de novos grupos totalitários, hoje mais
descentralizados do que os anteriores, Razzo cita os movimentos das “minorias”,
os black blocs, os invasores de terras rurais ou urbanas, toda militância que
precisa profanar valores tradicionais, depredar, usurpar a propriedade privada,
destruir símbolos religiosos. Todos eles podem indicar “uma quantidade generosa
do ímpeto totalitário porque revelam essa lógica da perversão: a
desorganização da cultura correspondente a uma vontade de potência
destruidora e anárquica”.
O esquema mental sugerido por Razzo é o seguinte: “Quando
deformada, tal como é a imaginação idílica e diabólica, ao ser confrontada
com a realidade, a imaginação totalitária se transforma em ato puro de
desilusão e ressentimento. A desilusão, difusa, transforma-se em angústia. A
angústia, em medo. E o medo, em violência redentora”. Por não suportar a
angústia da vida, o totalitário parte para a destruição em nome da redenção
total.
Como o mundo só não é melhor porque o outro não
permite (“o inferno são os outros”, dizia Sartre), então é necessário eliminar
todos os obstáculos do caminho, a começar por esse outro. Podem ser
os judeus para os nazistas, os kulaks para os soviéticos, os
capitalistas para os comunistas, cada mente totalitária escolherá seu bode
expiatório, aquele que impede a realização de seus sonhos, de sua felicidade.
Os ideais totalitários, assim, plantam as sementes das
tragédias. “Como Raskólnikov, o perturbado personagem principal de Crime
e castigo, de Dostoievski, às vezes não somos capazes de resistir à
tentação de nos imaginarmos como o exemplo histórico de homens
extraordinários, que estão acima do bem e do mal”. E como “homens
extraordinários”, temos então o direito de eliminar os “piolhos” de nosso
caminho, esses entraves para a construção de um “mundo melhor”.
Todos precisamos de uma fuga para esse mundo frio e sem
sentido. O problema é quando tal esperança é depositada na política. Como diz
Razzo, “A arte talvez fosse o lugar mais indicado e adequado para realizarmos
os nossos mais elevados ideais desde que a política fique fora disso”. Na
mesma linha, Mario Vargas Llosa concluiu: “Devemos buscar a perfeição na
criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No
coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O
paraíso não é igual para todos”.
Por fim, vale notar que o livro de Razzo conta com uma
beleza particular: tem um tom autobiográfico. Relata sua experiência de
adolescente ateu e seguro de suas “ideias racionais”, que recomendou um aborto
a um casal de amigos. O feto era um “piolho” que poderia ser eliminado pela
visão utilitária. A coisa mais racional a fazer era se livrar do estorvo. Hoje,
Razzo dedica um bom tempo ao combate do aborto. Seu livro também pode ser visto
como sua tentativa de se “purificar”, de se redimir desse “pecado”, e valorizar
a vida humana, sagrada, ainda que limitada, imperfeita.
Afinal, o argumento de que podemos matar para evitar
sofrimento é perigoso: “A tentação do diabo poderia ser levada até as
últimas consequências: para acabar com o sofrimento no mundo, só mesmo
acabando com o homem. Mas não desejamos acabar com o homem”. Não! Não somos
niilistas. Nós desejamos valorizar o homem, cada homem, cada vida,
como uma finalidade em si mesma. É quando esse princípio
começa a ser relativizado que nasce a fagulha da imaginação totalitária.
Rodrigo Constantino
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