Jornal da Tarde, 29 de Março de 2001
A falta de santos, de místicos, de
filósofos, num país de dimensões continentais e 500 anos de existência,
já basta para fazer dele uma anomalia espiritual assustadora,
provavelmente sem similar na História universal.
Porém mais anormal ainda é que ninguém
se preocupe com isso, que todos creiam dever constituir primeiro a
sociedade ideal, com 200 milhões de cidadãos satisfeitos e rechonchudos,
para depois, só depois, tratar de adquirir alguma consistência no plano
do espírito. Esta pretensão insensata é talvez a maior manifestação de
desprezo coletivo à “única coisa necessária” que já se observou na
espécie humana.
Não há, no repertório das possibilidades
históricas conhecidas, exemplo de sociedade que lograsse encher todos
os estômagos para só depois alimentar os corações e cérebros. Os povos
mais primitivos, as comunidades mais rudimentares já mostravam saber que
algum tipo de conhecimento metafísico precedia no tempo e na ordem
hierárquica dos fatores a organização material da sociedade – pois a
sociedade é feita por homens, e a organização da alma humana precede a
possibilidade mesma da ação racional na sociedade.
A expressão “mito fundador” anda hoje
nas bocas dos nossos acadêmicos, mas é evidente que eles não têm a menor
idéia do que seja isso. Imaginam que se trate de uma enorme ilusão
coletiva inventada por espertalhões da classe dominante para colocar os
homens a seu serviço – uma imensa cenoura de burro a orientar o trajeto
da carroça histórica. Santo Deus! Acham que mito fundador é ideologia.
O conceito de mito fundador vem de
Schelling. Um mito fundador não é uma ideologia. Ideologia é um discurso
que não compreende a realidade, mas motiva os homens a substituir uma
realidade que compreenderam mal por outra da qual não vão compreender
nada. Inspirados pela ideologia do socialismo, os seguidores de Lenin
substituíram a sociedade tzarista, da qual tinham uma compreensão
falseada, pela monstruosidade incompreensível que foi a sociedade
soviética.
Inspirados nos falsos diagnósticos sociais de Hitler, os
nazistas desmantelaram uma república que não compreendiam e puseram no
lugar dela um pesadelo ininteligível. Guiados por pessoas que acham que
mito fundador é ideologia, um povo que não compreende a raiz de seus
males se prepara, neste país, para produzir males infinitamente maiores
que, se vierem a se consumar, talvez já não possam ser compreendidos por
nenhuma inteligência humana.
Ideologia é isso: um discurso que,
partindo de uma falsa visão do presente, atrai os homens para a
construção de um futuro que, depois de pronto, é feio demais para que
suportem reconhecer nele a obra de suas mãos. Por isso os desiludidos de
ideologias criminosas raramente se apresentam como aquilo que são:
cúmplices fracassados de um crime sem recompensa. Apresentam-se como
vítimas traídas pelo destino. Falseiam o passado como falsearam o
futuro.
Um autêntico mito fundador, ao
contrário, é uma verdade inicial compactada que, no desenrolar da
História, vai desdobrando o seu sentido e florescendo sob a forma de
ciência, de leis, de valores, de civilização. Um mito fundador não é um
“produto cultural”, pela simples razão de que ele, e só ele, é a semente
de toda cultura possível.
Um mito fundador constitui-se, em geral,
da narrativa simbólica de fatos que efetivamente sucederam, fatos tão
essenciais e significativos que acabam por transferir parte do seu
padrão de significado para tudo o que venha a acontecer em seguida numa
determinada área civilizacional. Assim, por exemplo, Northrop Frye
demonstrou que todos os esquemas narrativos conhecidos na grande
literatura ocidental são variações de enredos bíblicos.
Ora, os esquemas narrativos da
literatura superior são os padrões de autocompreensão imaginativa de uma
civilização. E os padrões de autocompreensão imaginativa são, por sua
vez, os esquemas de ação possíveis.
A Bíblia, mito fundador da civilização
ocidental, está no fundo de toda a nossa compreensão de nós mesmos e de
todas as nossas possibilidades de ação.
Fora disso, não há senão ideologia,
erro, loucura. A desorientação radical da sociedade brasileira vem da
ligação tênue, cada vez mais distante, cada vez mais evanescente, que
nossa história tem com as raízes bíblicas da civilização do Ocidente.
Tanto perdemos a compreensão do nosso mito fundador que chegamos a querer substituí-lo por mitos tribais, indígenas ou africanos, belos e sugestivos o quanto sejam, mas ineptos a dar forma a uma civilização vasta e complexa.
Tanto perdemos a compreensão do nosso mito fundador que chegamos a querer substituí-lo por mitos tribais, indígenas ou africanos, belos e sugestivos o quanto sejam, mas ineptos a dar forma a uma civilização vasta e complexa.
Mas hoje descemos abaixo dos mitos tribais, que,
limitados o quanto fossem, tinham a sua verdade. Já não queremos nem
mesmo construir o Brasil em cima de verdades parciais. Queremos a
mentira total. Queremos uma ideologia.
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