Um diálogo primoroso do livro “Tropas Estelares” é o nosso destaque de hoje no Arca Reaça. Enviado pelo leitor Alexandre Oswald, ajuda a botar em termos corretos o debate sobre a violência no país e a participação de menores de idade nesta crise, especialmente no que diz respeito à série de arrastões no Rio de Janeiro e litoral paulista.

Percebi que estava me lembrando de uma discussão em nossa classe de História e Filosofia da Moral. O Sr. Dubois estava falando sobre as desordens que precederam a queda da república da América do Norte, no século XX. De acordo com ele, houve uma época logo antes de eles entrarem pelo ralo em que crimes como os de Dillinger eram tão comuns como brigas de cachorros. O Terror não tinha sido apenas na América do Norte – a Rússia, as Ilhas Britânicas e outras partes do mundo também o tinham. Mas alcançou o pico na América do Norte logo antes de as coisas ruírem.

— Pessoas cumpridoras da lei, — Dubois tinha nos contado, — raramente ousavam ir a um parque público à noite. Fazer isso era se arriscar a ser atacado por alcatéias de crianças, armadas com correntes, facas, armas feitas em casa, porretes… se arriscar a no mínimo ser ferido, quase certamente roubado, provavelmente aleijado pelo resto da vida – ou até mesmo morto. Isso continuou por anos, até a guerra entre a Aliança Russo-Anglo-Americana e a Hegemonia Chinesa.

Assassinato, vício em drogas, furto, assalto e vandalismo eram coisas comuns. E os parques não eram os únicos lugares – essas coisas também aconteciam nas ruas, à luz do dia, nos pátios das escolas, até mesmo dentro dos prédios escolares. Mas os parques eram tão notoriamente inseguros que gente honesta ficava longe deles após o escurecer.

Tinha tentado imaginar essas coisas acontecendo em nossas escolas. Simplesmente não podia. Nem em nossos parques. Um parque era um lugar para diversão, não pra ser ferido. E ser assassinado em um… — Sr. Dubois, eles não tinham polícia? Ou tribunais?

— Tinham muito mais polícia do que nós. E mais tribunais. Todos com trabalho em excesso.
— Acho que não entendo. — Se um garoto em nossa cidade tivesse feito metade daquilo… bem, ele e o pai teriam sido açoitados lado a lado. Mas essas coisas simplesmente não aconteciam.

O Sr. Dubois então me intimou: — Defina um “delinqüente juvenil”.
— Ãh, um daqueles garotos – aqueles que batiam nas pessoas.
— Errado.
— Ãhn? Mas o livro diz…

— Minhas desculpas. O seu livro texto diz isso. Mas chamar um rabo de perna não faz com que o nome sirva. “Delinqüente juvenil” é uma contradição em termos, uma que dá uma pista para o problema deles e a sua falha em resolvê-lo. Você já criou um cachorrinho?
— Sim, senhor.
— Você o treinou para não fazer as suas necessidades dentro de casa?

— Bem… sim, senhor. Após algum tempo. — Foi a minha lerdeza nisso que fez com que a mãe decidisse que cães deviam ficar fora de casa.
— Ah, sim. Quando seu cachorrinho fazia besteira, você ficava zangado?
— Que? Oras, ele não sabia o que fazia, estava apenas sendo um cachorrinho.
— O que você fazia?

— Oras, eu dava um bronca, esfregava o nariz dele na sujeira e dava uns tapinhas.
— Certamente ele não podia entender as suas palavras?
— Não, mas podia perceber que eu estava chateado com ele!
— Mas você acabou de dizer que não estava zangado. O Sr. Dubois tinha um jeito de confundir as pessoas que nos deixava furiosos. — Não, mas eu tinha de fazer ele pensar que eu estava. Ele tinha de aprender, não é?

— Concordo. Mas, tendo tornado claro a ele que você desaprovava o que ele fez, como pode ser tão cruel a ponto de também bater nele. Você disse que o pobre bicho não sabia que estava fazendo algo de errado. Mesmo assim você fez ele sofrer dor. Justifique-se! Ou você é um sádico?

Na época eu não sabia o que era um sádico – mas sabia sobre cachorrinhos. — Sr. Dubois, você tem de fazer assim! Você dá uma bronca nele pra que ele saiba que fez algo errado, você esfrega o nariz dele naquilo pra que ele saiba do que você está falando, você dá uns tapas nele pra que ele não faça isso de novo – e tem de fazer isso na hora! Não ajuda nada castigar ele mais tarde; vai apenas confundi-lo.

Mesmo assim, ele não vai aprender com uma lição, então você o vigia e o pega de novo e bate mais forte. Bem rápido ele aprende. Mas é uma perda de tempo apenas dar uma bronca nele. — Então acrescentei: — Aposto que o senhor nunca criou cachorrinhos.

— Muitos. Estou criando um dachshund agora – pelos seus métodos. Vamos voltar àqueles criminosos juvenis. Os piores de todos eram em média ligeiramente mais jovens do que vocês aqui nesta classe… E geralmente começavam na carreira do crime bem mais jovens. Não nos esqueçamos daquele cachorrinho. Aquelas crianças eram pegas muitas vezes; a polícia prendia montes delas todos os dias. Elas levavam broncas? Sim, em geral severas.

Os seus narizes eram esfregados no que haviam feito? Raramente. Órgãos de imprensa e do governo em geral mantinham os nomes delas em segredo – em muitos lugares isso era exigido por lei para criminosos de menos de dezoito anos. Elas apanhavam? De jeito nenhum! Muitas não tinham apanhado nem mesmo quando eram pequenas; havia uma crença generalizada de que bater nas crianças, ou dar-lhes qualquer punição que envolvesse dor, causava um dano psíquico permanente.

(Cheguei à conclusão de que o meu pai nunca tinha ouvido falar daquela teoria.)

— Punição corporal nas escolas era proibida por lei, — ele continuou. — Açoitamentos eram legais como sentença de um tribunal apenas em uma pequena província, o Delaware, e mesmo lá apenas para uns poucos crimes e raramente era invocado; era considerado como uma ” punição cruel e incomum”.

Dubois estava pensando em voz alta: — Não compreendo essas objeções a punição “cruel e incomum”. Apesar de que um juiz deva ser benevolente em seus propósitos, suas sentenças devem fazer com que o criminoso sofra, senão não há punição – e a dor é o mecanismo básico construído dentro de nós, que nos protege, avisando-nos quando algo ameaça a nossa sobrevivência. Por que iria a sociedade se recusar a usar um tal mecanismo de sobrevivência tão altamente aperfeiçoado. No entanto, aquele período estava recheado de absurdos pseudopsicológicos.

— Quanto a “incomum”, uma punição deve ser incomum ou não serve de nada. — Então ele apontou o coto para outro garoto. — O que aconteceria se um cachorrinho fosse espancado toda hora?

— Ãh… provavelmente ficaria louco!
— Provavelmente. Certamente não ensinaria a ele coisa alguma. Quando tempo faz desde a última vez que o diretor desta escola teve de chicotear um aluno?
— Ãh, não tenho certeza. Uns dois anos. Foi o garoto que roubou…

— Não importa. Tempo suficiente. Isso quer dizer que é uma punição incomum o bastante para ser significante, para desencorajar, para ensinar. De volta àqueles jovens criminosos -Eles provavelmente não apanharam quando pequenos; certamente não foram açoitados por seus crimes. A seqüência usual era: por um primeiro delito, um aviso – uma reprimenda, geralmente sem julgamento.

Após vários delitos uma sentença de confinamento mas com a sentença suspensa e o jovem colocado em um período de experiência. Um garoto podia ser preso e condenado várias vezes antes que fosse punido – e então isso seria apenas com confinamento, junto de outros como ele, de quem aprenderia hábitos ainda mais criminosos. Se se mantivesse afastado de maiores problemas enquanto confinado, podia em geral até mesmo evitar a maior parte daquela punição suave e ser colocado em experiência – “liberdade condicional” no jargão da época.

Esta incrível seqüência de acontecimentos podia continuar por anos enquanto os seus crimes aumentavam em freqüência e perversidade, sem qualquer conseqüência a não ser raros chatos-mas-confortáveis confinamentos. Então subitamente, em geral pela lei em seu aniversário de dezoito anos, este assim chamado “delinqüente juvenil” se torna um criminoso adulto – e algumas vezes em apenas semanas ou meses acaba numa cela do corredor da morte esperando a execução por assassinato.

Você! Tinha me escolhido de novo. — Suponha que apenas desse broncas em seu cachorrinho, nunca o punisse, deixasse ele fazer coisas erradas em casa… e de vez em quando o trancasse numa casinha mas logo o deixasse voltar pra dentro de casa com uma advertência pra não fazer aquelas coisas de novo. Então um dia você nota que ele é um cachorro crescido e ainda não está ensinado a fazer sujeira no lugar certo – depois do que você saca uma arma e o mata. Comente, por favor?

— Oras… esse é o jeito mais maluco de criar um cachorro que eu já ouvi falar!
— Concordo. Ou uma criança. De quem seria a culpa?
— Ãh… oras, minha, eu acho.
— Concordo de novo. Mas tenho certeza.
— Mas Sr. Dubois, — uma garota falou num impulso, — por quê? Por que eles não batiam nas crianças pequenas quando elas precisavam e não usavam uma boa dose de couro em qualquer um dos mais velhos que merecesse – o tipo de lição que nunca esqueceriam! Falo daqueles que faziam coisas realmente más. Por que não?

— Eu não sei, — ele respondeu seriamente, — exceto que o método testado pelo tempo de insular virtude social e respeito pela lei nas mentes dos jovens não atraía uma classe pré-científica e pseudoprofissional que chamava a si mesma de “trabalhadores sociais” ou algumas vezes “psicólogos infantis”.

Aparentemente isso era simples demais para eles, já que qualquer um podia fazer, usando apenas a paciência e firmeza necessárias para treinar um cachorrinho. Algumas vezes me perguntei se eles tinham nutrido um velado interesse na desordem – mas isso é improvável; adultos quase sempre agem pelos “mais altos motivos” conscientes, não importa qual seja o seu comportamento.

— Mas – meu Deus! — a garota respondeu. — Eu não gostava de apanhar mais do qualquer criança gosta, mas quando precisei disso, mamãe me deu. A única vez em que fui castigada na escola apanhei de novo quando cheguei em casa – e isso foi anos e anos atrás. Não espero nunca ser arrastada pra frente de um juiz e sentenciada a ser açoitada; você se comporta e essas coisas não acontecem. Não vejo nada de errado com nosso sistema; é muito melhor do que não ser capaz de ir pra rua por medo de morrer – oras, aquilo é horrível!

— Concordo. Minha jovem, o erro trágico que aquelas pessoas bem intencionadas cometeram, quando contrastado com o que elas pensavam estar fazendo, é muito profundo. Eles não tinham uma teoria científica da moral. Tinham uma teoria da moral e tentavam viver por ela (eu não devia ter zombado de seus motivos), mas a teoria deles estava errada – metade era uma miragem, a outra metade era charlatanismo racionalizado. Quanto mais empenhados eram, mais perdidos ficavam. Veja, eles assumiam que o homem tinha um instinto moral.

— Senhor? Eu pensei… Mas ele tem! Eu tenho.

— Não, minha querida, você tem uma consciência cultivada, uma consciência muito cuidadosamente treinada. O homem não tem instinto moral. Ele não nasce com um senso de moral. Você não nasceu com ele, eu não nasci com ele – e um cachorrinho não o tem. Nós adquirimos um senso moral, quando o fazemos, através de treinamento, experiência e trabalho duro mental. Aqueles desafortunados criminosos juvenis nasceram sem qualquer senso moral, da mesma forma que você ou eu, e não tiveram chance de adquiri-lo; suas experiências não o permitiram.

O que é “senso moral? É uma elaboração do instinto de sobrevivência. O instinto de sobrevivência é a própria natureza humana, e cada aspecto de nossas personalidades deriva dele. Qualquer coisa que entre em conflito com o instinto de sobrevivência faz com que cedo ou tarde o indivíduo seja eliminado e assim deixa de aparecer em gerações futuras. Essa verdade é matematicamente demonstrável e verificável em todo lugar; é o único imperativo eterno controlando tudo o que fazemos.

— Mas o instinto para sobreviver, — ele tinha continuado, — pode ser cultivado em motivações mais sutis e muito mais complexas do que a necessidade cega e bruta do indivíduo permanecer vivo. Minha jovem, o que você erroneamente chamou de seu “instinto moral” foi a instilação em você pelos mais velhos da verdade de que a sobrevivência pode ter imperativos mais fortes do que a sobrevivência pessoal. Sobrevivência de sua família por exemplo.

De suas crianças, quando as tiver. De sua nação, se você se esforçar para chegar tão alto na escala. E por aí em diante. Uma teoria da moral cientificamente verificável deve estar assentada no instinto do indivíduo para sobreviver – e em nenhum outro lugar! – e deve descrever corretamente a hierarquia da sobrevivência, apontar as motivações em cada nível, e resolver todos os conflitos.

— Temos uma tal teoria agora; podemos resolver qualquer problema moral, em qualquer nível. Auto-interesse, amor da família, dever para com a nação, responsabilidade para com a raça humana – estamos até mesmo desenvolvendo uma ética exata para relações extra-humanas.

Mas todos os problemas morais podem ser exemplificados por uma citação errônea: “Nenhum homem tem amor tão grande quanto o de uma gata que morre para defender seus gatinhos”. Uma vez que você entenda o problema com que se defrontou aquela gata e como ela o resolveu, você estará pronta para examinar a si mesma e descobrir o quão alto na escada da moral é capaz de subir.

— Esses criminosos juvenis chegaram a um baixo nível. Nascidos apenas com o instinto de sobrevivência, a mais alta moralidade a que chegaram foi uma fraca lealdade a um grupo de seus iguais, uma gangue de rua. Mas os fazedores-do-bem tentaram “apelar para suas boas naturezas”, tentaram “chegar a eles”, tentaram “acender o senso de moral deles”. Disparatei Eles não tinham “boas naturezas”; a experiência lhes ensinou que o que estavam fazendo era o jeito de se sobreviver. O cachorrinho nunca apanhou; sendo assim o que ele fazia com prazer e sucesso devia ser “moral”.

— A base de toda moralidade é o dever, um conceito que tem a mesma relação com o grupo que o auto-interesse tem com o indivíduo. Ninguém pregou dever para essas crianças de um modo que elas pudessem entender – ou seja, batendo nelas. Mas a sociedade em que estavam contou a elas inúmeras vezes sobre seus “direitos”.

— Os resultados deviam ter sido previsíveis, pois um ser humano não tem qualquer tipo de direitos naturais.

O Sr. Dubois tinha parado. Alguém mordeu a isca. — Senhor? E a “vida, liberdade e busca da felicidade”?

— Ah, sim, os “direitos inalienáveis”. Todo ano alguém cita aquela magnífica poesia. Vida? Que “direito” à vida tem um homem que está se afogando no Pacífico? O oceano não vai dar atenção aos seus gritos. Que “direito” à vida tem um homem que precisa morrer de modo a salvar suas crianças? Se ele escolhe salvar a sua própria vida, ele faz isso por uma questão de “direitos”?

Se dois homens estão morrendo de fome e a única alternativa é o canibalismo, o direito de qual homem é “inalienável”? E é isso um “direito”? Quanto à liberdade, os heróis que assinaram aquele grande documento comprometeram-se a pagar pela liberdade com suas vidas. A liberdade nunca é inalienável; ela deve ser reconquistada constantemente com o sangue dos patriotas ou sempre desaparece. De todos os assim chamados direitos humanos naturais que tenham alguma vez sido inventados, a liberdade é o menos provável de ser barato e nunca é grátis.

— O terceiro “direito”? – a “busca da felicidade”? Sem dúvida que é inalienável, mas não é um direito; é apenas uma condição universal que tiranos não podem eliminar ou patriotas restaurar. Me atire numa masmorra, me queime numa fogueira, me coroe rei dos reis, eu posso “buscar a felicidade” enquanto meu cérebro viver – mas nem deuses, nem santos, homens sábios ou drogas sutis podem assegurar que a alcançarei.

O Sr. Dubois então se virou para mim. — Disse a você que “delinqüente juvenil” é uma contradição em termos. “Delinqüente” significa “o que falhou em cumprir o dever”. Mas dever é uma virtude adulta – sem dúvida um jovem se torna um adulto quando, e apenas quando, adquire conhecimento dos deveres e se dedica a eles com a mesma intensidade do amor-próprio com que nasceu. Nunca houve, não pode haver, um “delinqüente juvenil”. Mas para cada criminoso juvenil há sempre um ou mais adultos delinqüentes – pessoas de idade madura que ou não conhecem seu dever, ou que, conhecendo-o, falharam em cumpri-lo.


— E esse foi o ponto fraco que destruiu o que foi em vários aspectos uma cultura admirável. Os desordeiros mirins que vagavam pelas ruas eram sintomas de uma doença maior; seus cidadãos (todos eles eram considerados como tais) glorificavam a tal mitologia dos “direitos”… e perderam de vista os deveres. Nenhuma nação, assim constituída, pode perdurar.


Pensei sobre como o Coronel Dubois teria classificado Dillinger. Seria ele um criminoso juvenil que merecia pena, mesmo que você tivesse de se livrar dele? Ou seria um delinqüente adulto que não merecia mais do que desprezo?

Eu não sabia, jamais saberia. A única coisa que eu estava certo é de que ele nunca mais mataria uma garotinha.


Aquilo era o bastante para mim. Fui dormir.”