E não é um fenômeno súbito e nem inexplicável
No mesmo dia em que revogou a prisão
preventiva do ex-ministro Paulo Bernardo, o STF aprovou a súmula
vinculante n. 56, cujo texto é o seguinte: “A falta de
estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em
regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nesta hipótese, os
parâmetros fixados no Recurso Extraordinário (RE) 641320”.
E que parâmetros são esses? Entre eles, o seguinte: “havendo
déficit de vagas, deverá determinar-se: (i) a saída antecipada de
sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade
eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é
posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de
penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao
regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas
propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado”. Prosseguimos com uma das mais marcantes características de nossa tradição jurídica: tirar proverbial sofá da sala.
Não é nenhum segredo ou grande
descoberta sociológica que é marcante da cultura brasileira “enxugar
gelo”, ou seja, tomar medidas inócuas que não resolvem problemas, mas
apenas os apaziguam momentaneamente – para, não raro, eles ressurgirem
ainda mais graves e complexos pouco tempo depois.
Com um pouco de verniz
de erudição e palavreado hermético, é o que fez o STF, mais uma vez. Há
uma semana, o tribunal decidiu que o réu primário que seja condenado
por tráfico de drogas responde a uma modalidade, digamos, “híbrida” do
crime, que deixa de ser hediondo se o acusado tem bons antecedentes, não
se dedica ao crime e não faz parte de organização criminosa.
Seria o
caso de se pensar, em um contexto menos dramático: quem nunca atrasou um
boleto na vida poderia exigir que, na primeira vez que o fizesse, não
corressem juros nem correção monetária? Em outro, mais grave: o homicida
com bons antecedentes, que não matou antes nem integra uma facção
criminosa, mas mata com requintes de crueldade na primeira vez: responde
pelo homicídio agravado ou deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem?
Pois, agora – aliás, como sempre – um
problema do Estado, a infraestrutura carcerária, foi devidamente
socializado, virou um problema de todos nós. Não é exagero dizer, e nem é
algo com que estejamos desacostumados: pergunte para os pensionistas
dos Correios, da Petrobrás, para os aposentados e servidores endividados
que foram roubados – veja só, voltamos a ele – por Paulo Bernardo. No
fim, a conta sempre chega para o mesmo sujeito: aquele que paga suas
contas, recolhe sua previdência, vive quietinho sem dar trabalho para o
Estado e, no final das contas, amarga um prejuízo que não causou.
É bastante intuitivo constatar um efeito
prático da súmula vinculante 56: os condenados com penas mais longas
(aqueles que cometeram, portanto, crimes mais graves) poderão ser soltos
mais cedo se não houver vagas de regime fechado no sistema prisional.
Presume-se que sejam os criminosos mais perigosos, que praticaram
condutas sujeitas a grandes reprimendas – o que parece um truísmo, mas,
em se tratando de Brasil, é sempre bom tomar cuidado.
De qualquer forma,
ninguém discute que manter um sistema prisional funcionando, com vagas
suficientes para tirar de circulação quem não possa estar em circulação é
uma das principais incumbências do Estado. Mas aqui é o Brasil! O
Estado não se desincumbe satisfatoriamente de nada – não há vagas.
Então, que se ponha na rua os condenados. Aqui acontece um choque de
princípios e valores: de um lado, as finalidades da pena, e entre elas
uma das mais importantes, que é (ou deveria ser) confinar criminosos
perigosos para que eles não possam reincidir em suas condutas contra
inocentes.
De outro, condições satisfatórias para o cumprimento da pena,
a dignidade do condenado: na prática, os promíscuos depósitos de gente,
as Pedrinhas e Ursos Brancos da vida, as decapitações, festas regadas a
bebidas e drogas, os celulares, o domínio obsceno das facções
criminosas sobre os estabelecimentos prisionais.
Há uma característica notável nas lides
penais do judiciário brasileiro: a sociedade (e, no caso concreto, a
vítima e as vítimas potenciais) é cada vez mais alijada da discussão. É
claro que no processo penal há duas partes: acusador e acusado. A
sociedade não participa formalmente do feito, mas é (ou deveria ser)
sempre tratada como “terceira interessada” em todo e qualquer processo
criminal, como uma questão de princípio e finalidade. Entretanto, o que
se verifica não é isso, mas uma discussão muito íntima entre o criminoso
e o ente estatal, com uma busca incessante pela melhoria da situação
daquele.
O discurso abolicionista é dominante, e os tribunais estão
sempre em busca de meios de diminuir penas, soltar apenados mais cedo,
afastar agravantes. Tudo isso é feito invocando-se valores
constitucionais que nem são tão abstratos assim, dada a natureza,
digamos, “enciclopédica” de nossa constituição. Uma curva malthusiana
imaginada com base em precedentes como esses aponta para um futuro
orwelliano em que a discussão sobre o “primeiro homicídio” é
perfeitamente provável.
Assim, o judiciário vai se afastando do papel de
mediador entre conduta socialmente relevante e sua conseqüência, e se
aproximando ao de promotor de um bar mitzvah da delinqüência,
preocupado em como melhor recepcionar, sem grandes traumas, quem opte
por uma vida criminosa. Está aí o atual significado de “progressão de
regime”.
A “molezinha penal” não é um fenômeno
súbito e nem inexplicável. Na era das grandes agendas progressistas,
disfarça-se de intenção humanitária – “cadeia não resolve!” , “devemos
ressocializar!”, “é uma escola do crime!” – mas tem efeitos nefastos e
inescapáveis. Basta que se fale da “proporcionalidade”, um princípio
jurídico e extraído de normas da constituição e de larga aplicação no
direito administrativo. Invoca-se a “proporcionalidade”, por exemplo,
para dosar a aplicação de uma sanção administrativa, que deve ser
proporcional à infração.
Será que o mesmo se verifica no processo penal?
Essa é uma questão que esbarra em um código penal de 1940,
sucessivamente remendado, e interpretado à luz dos valores
abolicionistas e progressistas – deixa isso pra lá, o que é que tem?
– e, no fim das contas, cada criminoso que passou pelo sistema e
reincide é um agente dessa “mudança”. É uma questão mais existencial do
que apenas “jurídica”, é uma questão de escolha civilizacional. Nossa
cultura “enxugadora de gelo” nunca foi pródiga no quesito de fazer
sentir as conseqüências de um ato. Nisso, o processo civil é muito mais
rigoroso – o inadimplemento do devedor é uma das melhores aplicações
financeiras que existem, com juros de 1% ao mês e taxa selic.
Sangue, no entanto, não rende – ele
coagula. Somos recordistas de homicídios e vivemos em uma das sociedades
mais violentas e mortíferas do mundo. E toda a discussão jurídica sobre
o “pós-crime” está circunscrita a atenuar as conseqüências desse tipo
de conduta, entregando a fatura das discussões travadas em plenários e
gabinetes refrigerados, animadas pelas mais nobres intenções, de volta à
sociedade. Em nome dessa abstração, muito sangue correu e ainda vai
correr.
A médica assassinada na linha vermelha há alguns dias – Gisele
Palhares Gouvêa, 34 anos – é mais um sacrifício no altar da
ressocialização, resultado do evidente descompasso entre uma conduta e
suas conseqüências: a relação de causa e efeito que qualquer criança que
enfia o dedo em uma tomada entende.
Quando abrimos mão do fator
dissuasório contido em uma pena, coisa que fizemos há bastante tempo sob
argumentos como o “direito penal do inimigo” e outras bobagens, só se
pode esperar que esse tipo de coisa aconteça com cada vez mais
freqüência, afinal, quem vai ter medo de matar sabendo o quão rápido vai
sair da cadeia? Espalhe sobre isso a cobertura do chantili sociológico
da “vítima da sociedade” que delinqüe “porque não tem opção” e – voilá! –
está aí o mais autêntico banana split brasileiro.
Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo. Escreve no Implicante às quintas-feiras.
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