quinta-feira, 30 de junho de 2016

“Molezinha penal”: é coisa nossa!


Coluna do Thiago Pacheco

E não é um fenômeno súbito e nem inexplicável


No mesmo dia em que revogou a prisão preventiva do ex-ministro Paulo Bernardo, o STF aprovou a súmula vinculante n. 56, cujo texto é o seguinte: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nesta hipótese, os parâmetros fixados no Recurso Extraordinário (RE) 641320”. 


E que parâmetros são esses? Entre eles, o seguinte: “havendo déficit de vagas, deverá determinar-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado”. Prosseguimos com uma das mais marcantes características de nossa tradição jurídica: tirar proverbial sofá da sala.


Não é nenhum segredo ou grande descoberta sociológica que é marcante da cultura brasileira “enxugar gelo”, ou seja, tomar medidas inócuas que não resolvem problemas, mas apenas os apaziguam momentaneamente – para, não raro, eles ressurgirem ainda mais graves e complexos pouco tempo depois. 


Com um pouco de verniz de erudição e palavreado hermético, é o que fez o STF, mais uma vez. Há uma semana, o tribunal decidiu que o réu primário que seja condenado por tráfico de drogas responde a uma modalidade, digamos, “híbrida” do crime, que deixa de ser hediondo se o acusado tem bons antecedentes, não se dedica ao crime e não faz parte de organização criminosa. 


Seria o caso de se pensar, em um contexto menos dramático: quem nunca atrasou um boleto na vida poderia exigir que, na primeira vez que o fizesse, não corressem juros nem correção monetária? Em outro, mais grave: o homicida com bons antecedentes, que não matou antes nem integra uma facção criminosa, mas mata com requintes de crueldade na primeira vez: responde pelo homicídio agravado ou deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem?


Pois, agora – aliás, como sempre – um problema do Estado, a infraestrutura carcerária, foi devidamente socializado, virou um problema de todos nós. Não é exagero dizer, e nem é algo com que estejamos desacostumados: pergunte para os pensionistas dos Correios, da Petrobrás, para os aposentados e servidores endividados que foram roubados – veja só, voltamos a ele – por Paulo Bernardo. No fim, a conta sempre chega para o mesmo sujeito: aquele que paga suas contas, recolhe sua previdência, vive quietinho sem dar trabalho para o Estado e, no final das contas, amarga um prejuízo que não causou.



É bastante intuitivo constatar um efeito prático da súmula vinculante 56: os condenados com penas mais longas (aqueles que cometeram, portanto, crimes mais graves) poderão ser soltos mais cedo se não houver vagas de regime fechado no sistema prisional. 


 Presume-se que sejam os criminosos mais perigosos, que praticaram condutas sujeitas a grandes reprimendas – o que parece um truísmo, mas, em se tratando de Brasil, é sempre bom tomar cuidado. 


De qualquer forma, ninguém discute que manter um sistema prisional funcionando, com vagas suficientes para tirar de circulação quem não possa estar em circulação é uma das principais incumbências do Estado. Mas aqui é o Brasil! O Estado não se desincumbe satisfatoriamente de nada – não há vagas. Então, que se ponha na rua os condenados. Aqui acontece um choque de princípios e valores: de um lado, as finalidades da pena, e entre elas uma das mais importantes, que é (ou deveria ser) confinar criminosos perigosos para que eles não possam reincidir em suas condutas contra inocentes. 


De outro, condições satisfatórias para o cumprimento da pena, a dignidade do condenado: na prática, os promíscuos depósitos de gente, as Pedrinhas e Ursos Brancos da vida, as decapitações, festas regadas a bebidas e drogas, os celulares, o domínio obsceno das facções criminosas sobre os estabelecimentos prisionais.



Há uma característica notável nas lides penais do judiciário brasileiro: a sociedade (e, no caso concreto, a vítima e as vítimas potenciais) é cada vez mais alijada da discussão. É claro que no processo penal há duas partes: acusador e acusado. A sociedade não participa formalmente do feito, mas é (ou deveria ser) sempre tratada como “terceira interessada” em todo e qualquer processo criminal, como uma questão de princípio e finalidade. Entretanto, o que se verifica não é isso, mas uma discussão muito íntima entre o criminoso e o ente estatal, com uma busca incessante pela melhoria da situação daquele. 


O discurso abolicionista é dominante, e os tribunais estão sempre em busca de meios de diminuir penas, soltar apenados mais cedo, afastar agravantes. Tudo isso é feito invocando-se valores constitucionais que nem são tão abstratos assim, dada a natureza, digamos, “enciclopédica” de nossa constituição. Uma curva malthusiana imaginada com base em precedentes como esses aponta para um futuro orwelliano em que a discussão sobre o “primeiro homicídio” é perfeitamente provável. 


Assim, o judiciário vai se afastando do papel de mediador entre conduta socialmente relevante e sua conseqüência, e se aproximando ao de promotor de um bar mitzvah da delinqüência, preocupado em como melhor recepcionar, sem grandes traumas, quem opte por uma vida criminosa. Está aí o atual significado de “progressão de regime”.


A “molezinha penal” não é um fenômeno súbito e nem inexplicável. Na era das grandes agendas progressistas, disfarça-se de intenção humanitária – “cadeia não resolve!” , “devemos ressocializar!”, “é uma escola do crime!” – mas tem efeitos nefastos e inescapáveis. Basta que se fale da “proporcionalidade”, um princípio jurídico e extraído de normas da constituição e de larga aplicação no direito administrativo. Invoca-se a “proporcionalidade”, por exemplo, para dosar a aplicação de uma sanção administrativa, que deve ser proporcional à infração. 


Será que o mesmo se verifica no processo penal? Essa é uma questão que esbarra em um código penal de 1940, sucessivamente remendado, e interpretado à luz dos valores abolicionistas e progressistas – deixa isso pra lá, o que é que tem? – e, no fim das contas, cada criminoso que passou pelo sistema e reincide é um agente dessa “mudança”. É uma questão mais existencial do que apenas “jurídica”, é uma questão de escolha civilizacional. Nossa cultura “enxugadora de gelo” nunca foi pródiga no quesito de fazer sentir as conseqüências de um ato. Nisso, o processo civil é muito mais rigoroso – o inadimplemento do devedor é uma das melhores aplicações financeiras que existem, com juros de 1% ao mês e taxa selic.


Sangue, no entanto, não rende – ele coagula. Somos recordistas de homicídios e vivemos em uma das sociedades mais violentas e mortíferas do mundo. E toda a discussão jurídica sobre o “pós-crime” está circunscrita a atenuar as conseqüências desse tipo de conduta, entregando a fatura das discussões travadas em plenários e gabinetes refrigerados, animadas pelas mais nobres intenções, de volta à sociedade. Em nome dessa abstração, muito sangue correu e ainda vai correr. 


A médica assassinada na linha vermelha há alguns dias – Gisele Palhares Gouvêa, 34 anos – é mais um sacrifício no altar da ressocialização, resultado do evidente descompasso entre uma conduta e suas conseqüências: a relação de causa e efeito que qualquer criança que enfia o dedo em uma tomada entende. 


Quando abrimos mão do fator dissuasório contido em uma pena, coisa que fizemos há bastante tempo sob argumentos como o “direito penal do inimigo” e outras bobagens, só se pode esperar que esse tipo de coisa aconteça com cada vez mais freqüência, afinal, quem vai ter medo de matar sabendo o quão rápido vai sair da cadeia? Espalhe sobre isso a cobertura do chantili sociológico da “vítima da sociedade” que delinqüe “porque não tem opção” e – voilá! – está aí o mais autêntico banana split brasileiro.

Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo. Escreve no Implicante às quintas-feiras.

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