terça-feira, 19 de julho de 2016

Cavalheirismo não é machismo, é só um sinônimo de gentileza

Desdenhar ou querer dar uma aula de sociologia em uma situação em que um homem tenta ser cavalheiro é de um pedantismo doentio. Não seja idiota
Cavalheirismo - Machismo
Há tempos o feminismo convencional tem mirado no termo “cavalheirismo” como algo ameaçador. Já li em algum lugar que o cavalheirismo é “o machismo envernizado”. Aparentemente, é como se um homem que presta honrarias a uma mulher fosse uma raposa disfarçada, esperando o melhor momento para enganar, ludibriar e se apoderar dessa pobre mulher vítima de um macho que se ofereceu para abrir a porta do elevador para ela. Que elas não me ouçam, mas esse é até um comportamento inconscientemente cristão, porque o diabo sempre se mostra sedutor e quando o incauto é seduzido pela fala mole do capiroto todos os males lhe acontecem porque no final das contas o diabo é o diabo. E assim tem sido visto o cavalheirismo masculino.



O que é um grande equívoco nessa história toda, além da óbvia desumanidade em encher o saco dos caras por nada, é que as investidas cavalheiras podem ser apenas uma tentativa de colocar em prática o melhor da educação que esse homem em questão recebeu da família. Famílias de rapazes simples podem apenas estar tentando educá-los para tratar com muita polidez uma mulher. E isso é tão bonito! Desdenhar ou querer dar uma aula de sociologia em uma situação em que um homem tenta ser cavalheiro é de um pedantismo doentio, reação tão infame quanto o ateu que responde “não acredito em Deus” quando alguém lhe deseja que fique com Ele. Em ambos os casos basta dizer “obrigado (a)”. Não seja idiota.



É comum, pelo Brasil, o conceito de que as mulheres são mais frágeis e portanto mais suscetíveis a certas situações que os homens. Nós somos latinos e em certo aspecto as mulheres são mais frágeis mesmo. Pela simples diferença da compleição física e nada mais, não há nenhuma outra teoria oculta, é coisa de biologia. O corpo masculino tem, em geral, mais capacidade cardíaca e pulmonar – ao menos que você seja uma atleta e tenha superado isso. Negar que somos biologicamente diferentes é uma perda de tempo que não leva a um lugar lúcido dessa discussão dos direitos inerentes aos gêneros e demais questões. Homens querem proteger mulheres. Que que tem? Isso não faz de nós seres incautos, frágeis e quase princesas anencéfalas.



Em uma busca simples pelo significado “cavalheirismo” se encontra apenas adjetivos que – desculpe essa frase de ursinho carinhoso – poderiam fazer um mundo melhor: nobreza, cortesia, gentileza. Não tem como dar errado um gesto cavalheiro que, prestem atenção, em nenhum lugar da história da nossa civilização está escrito que deva partir um homem para uma mulher. Já pararam pra pensar que mulheres podem ser cavalheiras? Sim, o substantivo existe na língua portuguesa na flexão do gênero feminino, ninguém precisou forçar a barra como no episódio recente do uso do “presidenta” – cruz credo, inclusive.



Toda essa desconfiança com o cavalheirismo me faz lembrar Dom Quixote: um homem que é gentil e sua gentileza faz dele um bobo ou um ser maligno como alguns acreditam nessa contemporaneidade. Sabe aquele sentimento de compaixão e admiração concomitantes? O sentimento que dá um nó na garganta como naquele filme “O Campeão” do Franco Zefirelli em que o John Voight morre no ringue? Porque vai haver um Dom Quixote nessa história toda, alguém simples que acha correto o seu cavalheirismo compartilhado com homens e mulheres e que de repente descobriu que seu jeito de ser, o que lhe ensinaram ser certo, na verdade é errado. Independentemente do cavalheirismo, a maldade, a grosseria e a violência vão existir. Pode reparar, a sociedade agora deu de querer acabar com as coisas bonitas da vida.


Camilla Lopes

Lobos solitários são o Uber do terror - HÉLIO SCHWARTSMAN



FOLHA DE SP - 19/07

A internet, ao proporcionar comunicação instantânea e ilimitada, vem apagando as fronteiras entre profissionais estabelecidos e diletantes nos mais diversos ramos de atividade. Donos de carros agora podem fazer um dinheirinho como motoristas de Uber. Proprietários de imóveis são seduzidos para atuar no setor de hotelaria através de aplicativos como o Airbnb. O terrorismo não é uma exceção.

O fenômeno dos lobos solitários (ou das pequenas alcateias apenas tenuamente ligadas a centrais do terror como a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, para não perder a metáfora) é marca dos ataques mais recentes, como os que vimos em Nice e Orlando. Em ambos os casos, o perfil dos perpetradores não se encaixa bem no de pessoas que se radicalizam aos poucos nas mesquitas e acabam sendo doutrinadas e treinadas pelas organizações terroristas. Seus motivos para o ataque parecem acima de tudo pessoais –e a conexão religiosa soa mais como pretexto conveniente do que como causa primária.

A socióloga Liah Greenfeld, em recente artigo para o "New York Times", levantou uma hipótese interessante. Para ela, casos como os citados, embora possam ser considerados atos de terror, seriam mais bem descritos como ações de indivíduos com sérios transtornos mentais. Lobos solitários tenderiam a ser pessoas com histórico de depressão e desajustes sociais. Teriam fortes ímpetos suicidas. Ideologias violentas, como o islã radical, seriam delírios "prêt-à-porter" que os ajudariam a forjar um sentido para seu desconforto existencial, convertendo o que seria um suicídio clássico em assassinatos em massa. O interessante da hipótese de Greenfeld é que ela também explica as ações dos atiradores que vêm alvejando policiais nos EUA.

Se isso é correto, dá para dizer que o terrorismo também foi "desregulamentado". Malucos dispostos a morrer podem atuar por fora como terroristas. Tempos difíceis os nossos.


O 'suicídio' da América - ARNALDO JABOR


A realidade está mais louca do que a ficção. Assim sendo, a ficção tem de ser muito mais louca do que a realidade. A destruição ambiental, a sordidez mercantil, a estupidez no poder, o fanatismo do terror, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além de qualquer crítica. O mal é tão profundo que denunciá-lo ficou inútil.

Essa anomalia da vida atual aumenta a tradicional paranoia ocidental, principalmente nos Estados Unidos. E aí surge um estranho fenômeno que tento entender: a vontade de salvar o país e um desejo simultâneo de destruí-lo. A América parece querer suicidar-se. Por exemplo, a possibilidade do Trump ser presidente já é um filme de horror. Se esse rato for eleito, aí sim, o mundo pode acabar.

Também na cultura americana, são impressionantes os filmes de ação e catástrofe que destroem o país ou o mundo, produzidos por Hollywood. É estranho; imaginem o cinema francês destruindo Paris sem parar, invadido por alienígenas (aliás, como os terroristas), ou o cinema brasileiro arrebentando o Pão de Açúcar e o Corcovado! Eles acham isso normal. E lucrativo. Vejam os filmes dos últimos anos:Independence Day 1, Godzilla, Armagedon, Terremoto – A Falha de San Andreas, 2012, Impacto Profundo e tantos outros.

Por que esse amor e ódio? Creio que vêm de uma insatisfação da vida americana atual, uma grande angústia nacional. A América não sabe mais o que dizer sobre si mesma. Os Estados Unidos eram a “cultura da certeza”. O paraíso americano era a perfeição do funcionamento. Com o 11 de Setembro, junto com as torres, caíram também a arrogância e o orgulho da eficiência. Será que esta é a causa desse ataque doentio contra si mesmos?

Pensando nessas coisas deprimentes, fui ver o novoIndependence Day. Não gostei e concordei com críticos que dizem que o filme é tolo. Um deles diz: assistir a alienígenas explodindo de forma espetacular não é desculpa para passar duas horas no ar condicionado”.

Tenho visto muitos filmes de ação. Já sou entendido nas missões impossíveis, nas porradas, nas cidades destruídas, nas armas assassinas. Nunca o cinema foi tão útil para esquecermos o mundo atual e nunca os filmes foram tão brutais para, pelo avesso, exorcizar o medo da morte.

Na sala de cinema, sinto-me dentro de uma máquina de sensações programadas. Não há mais tempo para um filme ser visto, refletido, com choro, risos, vida. No escuro, mergulho em suspense, em prazeres sádicos, em assassinatos explosivos, em vinganças sem fim, narrados como uma ventania, como uma tempestade de “planos” (cenas) curtos, nunca mais longos do que 4 segundos, tudo tocado por orquestras sinfônicas plagiando Ravel para cenas românticas ou Stravinski para violências e guerras.

O conflito é permanente, de modo a impedir o espectador de ver seus conflitos internos. Não podemos desgrudar os olhos da tela. O desejo dos produtores é justamente apagar o drama humano dentro de nossas cabeças.

Os filmes comerciais antigos apelavam para a comoção das plateias, estórias onde o ‘bem’ era recompensado, onde o amor movia personagens, onde chorávamos ou riamos desde o Gordo e o Magro até Hitchcock. Logo depois da Guerra Fria, os filmes mostravam uma América em “frenética lua de mel” consigo mesma. Obras primas como Cantando na Chuvaforam feitas apenas por razões comerciais. Os musicais da Metro eram a felicidade democrática.

Hoje, passamos por emoções que nos exaurem como se fôssemos personagens dentro daqueles mundos em 3D, de pedras e balas que voam e nos fazem em pedaços espalhados pela sala, junto com os copos de Coca Cola e sacos de pipocas. Somos pipocas nesses filmes. É uma nova dramaturgia de Hollywood: a estética do videogame, onde a personagem principal não é mais o “outro”, mas nós mesmos, com o “joystick” na mão e nenhuma ideia na cabeça.

Os roteiros são feitos em computador, de modo a encher cada buraco, para que nada se infiltre na atenção absoluta. E, mais importantes que as personagens, são as “coisas” em volta. Sim, as coisas. Personagem é só um pretexto para mostrar o décor. E o décor é um grande showroom dos produtos americanos: maravilhosos aviões, supercomputadores, a genialidade técnica lutando por algum “bem” inexplicável, porque a ideia de “futuro” esmaeceu. Assim, não importam mais nem o enredo, nem o roteiro; só o gozo da cena.

Antigamente, sofríamos durante a trama, esperando que os heróis fossem felizes no final. Hoje, sabemos que tudo vai acabar bem, mas nos fascinam mais os infernos que eles terão de atravessar, para chegar a um desfecho fatalmente bom. A catarse chegará, mas antes temos amputações, bazucas estourando peitos, bombas, rios de sangue. Na vida americana, como nos filmes, perdeu-se a ideia de sentido. O happy end é coisa dos anos quarenta.

No entanto, acho novidades nisso tudo. Num mundo sem rumo, na América dividida, a tecnologia está criando uma nova estética. Acabou a linearidade narrativa e, com a visão de mundo desencantada, em meio à avalanche brutal de informações, está surgindo uma nova forma de profundidade “superficial”.

Uma espantosa nova linguagem não linear, polissêmica, surgiu e cresce como um “transformer”, nas telas do mundo. Parece até uma vanguarda tecnológica emergindo entre os efeitos especiais cada vez mais audaciosos. Talvez, daqui para a frente, só essa língua dará conta de nossa solidão, de nossa fome de ilusão.

Agora, mesmo falando essas coisas, confesso que adoro os filmes da Marvel. Já vi alguns blockbusters de extraordinária imaginação “wagneriana”. Avatar, por exemplo, Batman, ou a obra prima Thor, já fazem parte de uma nova “escola” estética. Não falo de “nova arte” ou uma nova cultura, pois isso já denotaria a ideia de “finalidade”, de meta a ser atingida. Falo de um caos maravilhoso que nos submirja para sempre num “presente” inexplicável.


Biografia dos terroristas sempre revela vidas de ressentimento - JOÃO PEREIRA COUTINHO


FOLHA DE SP - 19/07

Acontece um atentado terrorista na Europa –mais um, agora em Nice– e as perguntas dos dias seguintes são sempre as mesmas. Por quê? Como explicar o horror? Quais são as causas? Que fizemos nós para merecer isso? A ambição subjacente é óbvia: se soubermos as causas podemos evitar os efeitos.

Existem duas formas de responder a um tal cortejo de ansiedades. O primeiro é denegrir tais dúvidas, caracterizando os seus autores como ingênuos ou coisa pior. O terrorismo deseja o terror. E, quando vem embalado por qualquer caução islamita, deseja a morte dos infiéis. Será assim tão difícil de entender?

Na verdade, é difícil sim. E aqui está a segunda forma de responder às perguntas: o nosso pensamento progressista (e racionalista) impede uma compreensão genuína do horror.

Somos filhos do Iluminismo. Acreditamos que a razão, corretamente exercida, permite sempre uma melhoria moral e material da sociedade: a derrota do fanatismo; a defesa da tolerância; a partilha de um espaço público comum; e etc. etc. Os atos dos terroristas são "irracionais", dizemos nós, porque não se ajustam aos nossos critérios de racionalidade.

Essa "dissonância cognitiva" é inevitável. O Iluminismo teve consequências positivas na história dos homens: o reforço da separação entre o Estado e a Igreja, inexistente no Islã, foi um deles.

Também teve consequências desastrosas: se, como dizia Voltaire, o paraíso é onde estamos, então nada impede os seres humanos de procurarem esse paraíso na Terra. Dizer que as consequências dessa busca foram trágicas no século 20 é, obviamente, um eufemismo.

Só que o "projeto iluminista", na sua ânsia de defender e aplicar a soberania da razão humana, esqueceu-se de dois viajantes que sempre fizeram parte da história.

O primeiro é a "contingência", ou seja, a noção de que não é possível controlar tudo por mera ação humana. Pior ainda: a noção de que podem existir fatores imponderáveis que subvertem, ou até destroem, as melhores intenções. Essa ideia, que era pacífica para nossos antepassados, deixou de o ser com a arrogância racionalista moderna.

O segundo viajante se dá pelo nome de "ressentimento". A política das boas intenções esqueceu-se do "homem ressentido", para usar a expressão de Max Scheler (1874""1928): o sujeito que procura "lá fora" a justificação para o seu ódio interior. Como escrevia Edmund Burke (1729""1797) em crítica direta ao otimismo dos "philosophes": "O poder dos homens viciosos não é algo de negligente".

Esse poder está à vista: leio a biografia dos terroristas e, sem exceção, encontro sempre vidas de ressentimento. Podem ser ressentimentos familiares. Econômicos. Sentimentais. Sexuais. Ou, na era narcisística em que vivemos, um desprezo pelo exato mundo que não os reconhece na sua importância ou singularidade.

Idealmente, os homens ressentidos deveriam ter o anonimato que merecem, condenados a tragar o veneno que produzem para terceiros.

Mas os ressentidos profissionais encontram sempre uma "filosofia do ressentimento" que os redime. Exatamente como comunistas e nazistas encontraram no passado.

Essa "filosofia" é também ela um produto do ressentimento: o radicalismo islâmico propaga uma mensagem de ódio ao Ocidente, não apenas porque o Ocidente e os seus valores "liberais" (democracia, pluralismo, liberdade individual etc.) são odiosos –mas porque, na lógica do ressentido, o Ocidente é o culpado por todas as falhas de um povo, ou de uma cultura, ou de uma civilização. Lênin e Hitler poderiam tranquilamente subscrever essa visão.

Deixo as questões securitárias para os especialistas.

Mas duas conclusões filosóficas parecem-me fatais.

Para começar, a Europa terá que conviver com a contingência que tanto se esforçou por ignorar. Por melhores que sejam os sistemas policiais, nem todo o progresso tecnológico poderá eliminar o horror do imponderável. O paraíso, definitivamente, não é deste mundo.

Por último, os inimigos das sociedades livres sempre estiveram dentro delas: falo dos homens ressentidos que usarão sempre uma desculpa qualquer –o Partido, a Raça, o Profeta– para cometerem as suas atrocidades.

"Se soubermos as causas podemos evitar os efeitos?" Lamento. O ressentimento não funciona assim. A sua vontade de destruição é uma história longa. E será, como sempre foi, uma luta sem fim.