quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O formidável ritual democrático

O formidável ritual democrático


                                                           
Quando Max Weber fala de poder, ele faz distinções importantes para a compreensão da democracia. Um regime político centrado numa premissa revolucionária, pois é o único que periodicamente confirma pessoas em seus cargos, o que produz uma instabilidade estrutural paradoxalmente regulada.

Tanto isso é verdade que quando se dá um golpe, fala-se em tudo, menos em eleição. Esse grande rito garantidor de mudanças por dentro, esse formidável teste que une pessoas comuns a altos cargos necessários à administração pública. Política e sociedade estão juntas nas democracias e divorciadas nas ditaduras.

Weber é claro quando distingue poder de dominação. Algo básico para entender o governo dos humanos pelos humanos — esses bichos cujo programa é não ter programa sendo, por isso mesmo, dependentes do que Weber chamou de legitimação. A dimensão que domestica o monopólio da força, justificando-a e racionalizando-a numa autoridade, o que evita o caos ou, como dizia um outro clássico, a “guerra de todos contra todos”.

A dominação comunica quem manda e quem obedece. A passagem da força bruta para a dominação mediada e racionalizada por um sistema religioso ou jurídico é o que chamamos de sistema cultural — uma ordem capaz de lidar com suas diferenças, tomando-as como “naturais”.

Se o rei é ungido por Deus e se não existe dúvida sobre a sua existência e de que as relações humanas são um produto de ancestrais míticos que as criaram e engendraram os “costumes” com os quais vivemos, então a obediência não é devida à pessoa, mas ao papel que as pessoas desempenham, os quais têm uma chancela como divina ou legal.


O poder tem sempre o seu lado arbitrário e opressivo, mas a dominação é fundada em normas e gestos originários de narrativas sagradas ou de códigos ancestrais ou de leis naturais, fundadores da ordem humana. É assim que ela escapa da história e passa a impressão de eternidade.

O poder depende da força. A dominação requer acordos. “Tomar o poder”, como querem os imbecis, é uma banalidade; atingir — entretanto — um sistema razoável de dominação requer senso de justiça entre o mandante e o obediente. Pois entre eles existem normas e rituais que legitimam suas diferenças e podem revertê-las.

Tudo isso nos leva além de Weber, para Arnold Van Gennep — o revelador da estrutura elementar dos rituais, essa base comportamental da legitimidade.

Ele diz:
1. Os estágios críticos do ciclo de vida que começa com o nascimento, passa pela puberdade, casamento, paternidade e, finalmente, chega ao fim com a morte; ainda que estejam relacionados a eventos fisiológicos, são definidos socialmente;
2. A entrada e a saída desses estágios críticos são sempre marcadas por rituais e cerimônias não apenas nas “sociedades primitivas”, mas também na civilização cristã e nas civilizações da antiguidade;
3. Esses “ritos de passagem” incluem sempre três fases: separação (que remove os sujeitos do seu campo social rotineiro), transição ou margem e, finalmente, incorporação num novo campo e papel social.

Nas democracias, essas passagens ocorrem de tempos em tempos naquilo que chamamos de eleição — esse grandioso processo cerimonial no qual legisladores e executivos são substituídos numa ampla competição determinada pelo “voto”. Por uma promessa representativa de lealdade e confiança.
Neste sentido, a eleição é um ritual cujo objetivo explicito é a renovação — essa marca registrada do viés democrático. Ela é também uma ocasião na qual a sociedade pode reclamar aquilo a que aspira e ver-se a si mesma como um feixe de opiniões divergentes. Pode também servir como correção para governantes que traíram a confiança dos seus eleitores.

Foi exatamente isso a que assistimos tranquilamente neste último domingo e que iremos assistir novamente no “segundo turno”, quando será finalizada a associação de um candidato (que passa) ao cargo de presidente da República (que permanece).

Temos hoje uma conjuntura eleitoral marcada por divergências somadas a ressentimentos que impedem de agir com a tal racionalidade que o campo do político dizia possuir na sua definição moderna. Que Deus, esse representante de tudo o que tentamos enxergar, nos ajude e nos livre da violência, da extorsão e da impostura em nome da democracia.

Fonte: “O Globo”, 10/10/2018

Política de pai para filho

Política de pai para filho

Alto grau de parentesco entre parlamentares dificulta a renovação e compromete pautas importantes para o país


                                                                  
Levantamento realizado pela revista Congresso em Foco, em 2017, mostrou que 62% dos deputados e 73% dos senadores brasileiros têm parentesco com outros políticos. Em 2014, um estudo da ONG Transparência Brasil apontou o Rio Grande do Norte como o estado com a maior incidência de laços familiares, 100% dos deputados federais eleitos tinham parentesco político. Nestas eleições, não poderia ser diferente. Os vínculos familiares se repetem afetando ainda mais o processo de renovação política: ao menos sete chapas para o Senado são formadas por, no mínimo, dois parentes.
 
 
Para o advogado e conselheiro do Imil Sebastião Ventura, o Brasil conta com autênticas dinastias políticas, impedindo que novas estruturas governamentais sejam implementadas. Os atuais partidos do país não oferecem preparação adequada para a vida pública, e enquanto houver a herança familiar for determinante nas eleições, dificilmente estaremos diante de uma reforma política, explica:
 
“Enquanto não tivermos partidos comprometidos com os ideais da democracia, em promover o Estado Brasileiro, garantir que o capitalismo nacional prospere e escolher pessoas habilitadas e comprometidas com a decência pública ao invés de passar os cargos de geração para geração, vamos continuar com essa política feita entre amigos, entre a corte de Brasília e os bobos que são o povo”.
 
 
Ouça a entrevista completa no player abaixo:

 
 
Outro impasse para a mudança no Congresso, aponta Ventura, é o modelo de financiamento de campanhas eleitorais, onde antigos nomes da política acabam sendo os beneficiários. “Esses recursos públicos deveriam ser divididos de forma paritária, mas não, os caciques se apropriam e denominam quem vai receber e quem não vai. No final do dia, são os velhos políticos, através de velhas estratégias que mantêm o domínio do Congresso Nacional, impedindo que novas visões venham iluminar a política nacional”.
 
 
A democracia vai muito além das eleições e a contribuição diária dos cidadãos é fundamental para a renovação política brasileira, observa o advogado, ressaltando a importância do comprometimento da sociedade civil e setores empresariais com os ideais da democracia:
 
“O povo não pode ser o soberano de um dia só, ir na eleição, votar e pensar que isso aí é democracia. Não! O voto é necessário, mas democracia é mais do que voto. É fundamental que a sociedade se organize cada vez mais, que as lideranças cívicas participem, tenham coragem de falar e não se calem mais para as mentiras do poder. A democracia é um regime que exige a voz das pessoas. Se a política não funciona, os cidadãos devem reagir e quando as ruas gritam, a política escuta”.
 

Quadro é favorável a Bolsonaro

Quadro é favorável a Bolsonaro





A vitória de Jair Bolsonaro com quase o dobro de votos de Fernando Haddad sinaliza que o candidato do PSL entrará no segundo turno em posição de vantagem, embora todos considerem essa uma nova eleição. Mas quando um candidato sai do primeiro turno em ascensão, o clima que se cria em torno dele é favorável a novas adesões, e as negociações beneficiam o vencedor.



Por isso, nunca um candidato que entrou no segundo turno na dianteira da disputa presidencial deixou de se eleger. Foi assim com o expresidente Lula, que não ganhou eleições no primeiro turno – em 2006 chegou a ter 49% —, mas sempre saiu vencedor com cerca de 60% dos votos no segundo turno, contra candidatos do PSDB.




Desta vez, o candidato petista Fernando Haddad terá que reverter bem mais votos do que os adversários do PT nas vezes anteriores, uma tarefa mais difícil do que a do tucano Aécio Neves em 2014, por exemplo, que terminou o primeiro turno com 33,55%, contra 41,59% de Dilma, e conseguiu no segundo turno 48,36%, contra 51,64%, perdendo por pouco. Haddad, hoje, termina com menos votos do que Aécio teve no primeiro turno em 2014, e Bolsonaro quase venceu agora.




A união dos opostos será feita neste segundo turno à força, pois no primeiro as legendas de esquerda e de centro se dispersaram entre várias candidaturas. A questão é saber quão unidos estarão neste segundo turno, e quem terá mais condições de atrair votos do centro político.




Haddad, pelas pesquisas, é capaz de levar a maioria dos votos de Ciro, Marina e Alckmin, mas não o bastante para se contrapor a Bolsonaro, que atrairá, até mesmo por falta de opções, o eleitorado de centro-direita espalhado entre candidaturas nanicas de Alvaro Dias, Meirelles, Amoedo, além da parte minoritária de Alckmin e Ciro.


A impossibilidade de escolha, no entanto, pode gerar um índice maior de votos brancos, nulos e da abstenção neste segundo turno, o que facilitará a vida dos candidatos, especialmente do que está na frente, pois precisarão de menos votos válidos para se eleger.


Fonte: “O Globo”, 08/10/2018



Revendo rumos

Revendo rumos



                                                                        
A recomposição dos projetos dos candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, provocada por uma entrevista do Jornal Nacional de segunda-feira, além da boa notícia de que os dois abandonaram publicamente projetos de cunho autoritário, reafirma o peso da opinião pública numa sociedade democrática.
A procura pelos dois candidatos de um eleitor que, no primeiro turno, recusou os extremos que representam, tem mais que o objetivo de obter novos votos. Mostra que entenderam que, mesmo em situações de conflito exacerbado, a sociedade busca caminhos democráticos para resolver suas questões.
Resta saber se os dois candidatos seguirão nesse caminho, não deixando dúvidas sobre seus compromissos com a democracia e a Constituição de 1988. O candidato petista havia anunciado, feito o acordo eleitoral com o PC do B, que o PT incluiu em seu programa de governo a convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva.
Quando aconteceram as manifestações de rua de 2013, acuada pelo vigor dos protestos, a então presidente Dilma foi à televisão anunciar, entre outras medidas que nunca saíram do discurso, como um pacto nacional pela responsabilidade fiscal, a convocação de um plebiscito para a realização de uma reforma política através de uma Constituinte exclusiva.
 
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Não colocou em prática, por impossibilidade legal no caso da Constituinte, nenhum dos pactos, e acabou impedida de continuar na presidência justamente pela irresponsabilidade fiscal que patrocinou. A convocação de uma Constituinte foi o primeiro passo do então recém-eleito Hugo Chavez, na Venezuela, para avançar sobre os demais poderes, ampliando a força do Executivo.
A “Constituição da República Bolivariana da Venezuela”, promulgada em 1999, primeiro dos 14 anos de governo de Chavez, é considerada o ponto de partida do chavismo.
Também o entorno do presidenciável Jair Bolsonaro andou fazendo propostas que não se coadunam com um ambiente democrático. O vice, General Mourão, sugeriu que uma nova Constituição poderia ser feita por um grupo de notáveis, sem precisar do voto popular, bastando ser referendada numa eleição posterior.
Não existe tal possibilidade, e o mais parecido com isso foi a Comissão Arinos, formada por notáveis que propuseram ao Congresso um novo texto, como base para a nova Constituição a ser promulgada em 1988. Mesmo composta de “notáveis” e tendo suas vantagens, as propostas da Comissão foram solenemente ignoradas pelo presidente da Constituinte Ulysses Guimarães.
Também a referência à possibilidade de um autogolpe foi rejeitada por Bolsonaro, assim como Haddad rejeitou a afirmação do ex-ministro José Dirceu de que, vencida a eleição, o PT “tomaria o poder”. Mourão e Dirceu falavam da mesma coisa, de extremos opostos.
Os dois candidatos se curvaram à ordem constitucional e prometeram, diante da audiência do Jornal Nacional, a obedecerem a Constituição, que não permite que se use a democracia para atentar contra ela. A questão é saber o alcance e a seriedade desses compromissos.
O ex-presidente Lula fez a Carta aos Brasileiros em 2002 para garantir que manteria a política econômica então em vigor, e respeitaria o equilíbrio fiscal. Cumpriu a promessa durante seu primeiro mandato, mas, quando se sentiu forte, deu início à guinada em direção à “nova matriz econômica” de Guido Mantega que, aprofundada por Dilma, deu nessa enorme recessão de que ainda não nos livramos, com um déficit fiscal gigantesco.
O programa do PT é a continuidade da política econômica que nos levou onde estamos, e mais a reafirmação de controles sociais de diversos setores, até mesmo do Judiciário, passando pelos meios de comunicação, que sempre tentaram e não conseguiram, pela reação contrária da opinião pública.
Será preciso que Haddad, se não pode fazer a autocrítica necessária ao PT, abra mão desse dirigismo do Estado para que seu compromisso com a democracia possa ser levado a sério.
Também Jair Bolsonaro tem que desestimular seus seguidores, se não tem controle sobre eles como diz, a usar a violência para atingir seus objetivos de maior segurança pública e preservação dos valores conservadores. Esses objetivos não podem prescindir da proteção aos direitos humanos, e a maioria não pode submeter as minorias a suas convicções.
Fonte: “O Globo”, 10/10/2018