quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O fim das narrativas - MARCOS NOBRE


VALOR ECONÔMICO -08/08

O divórcio entre a sociedade e o sistema político vai perdurar

Desde que o impeachment apareceu no horizonte como possibilidade real, ali pelo final de 2015, qualquer coisa que se dissesse fazia parte de uma "narrativa". A formação forçada de dois grandes exércitos exigiu ajustes nos discursos ouvidos até então, exigiu uma unificação de posições conflitantes em nome de um objetivo comum. Durante o governo Lula, fixou-se a versão de que tinha sido inaugurada a nova etapa na história do país de classe média. A franja oposicionista concentrava seus esforços em denunciar esse projeto como pensado apenas para perpetuar um partido no poder.

A ideia do país de classe média perdeu seu pé em 2015, quando entrou em cena o ajuste fiscal de Joaquim Levy. Nesse momento, o PT abandonou a presidente em tudo o que dissesse respeito à política econômica. No mensalão, em 2005, o partido já tinha sido duramente atingido em uma de suas mais importantes bases ideológicas, a defesa da "ética na política". Conseguiu se recompor ideologicamente com o discurso do país de classe média, justamente. Mas ficou inteiramente vendido quando, em seu segundo mandato, Dilma Rousseff resolveu desdizer tudo o que disse durante a campanha eleitoral de 2014.

Porque não se tratava apenas de estelionato eleitoral, mas da exigência de que o PT realizasse uma segunda radical reconversão de seu discurso, de magnitude comparável àquela realizada depois do cataclisma do mensalão, dez anos antes. E já não havia nem condições econômicas nem de formulação para uma segunda guinada como essa. Entre outras coisas, também porque os artífices da ideia de país de classe média tinham construído o discurso em oposição às ideias de ajuste e de austeridade. E, no arranjo pemedebista da política, o partido líder do condomínio não pode deixar de sustentar o governo. Teria sido impossível a FHC sobreviver ao estelionato eleitoral que praticou na eleição de 1998 caso não tivesse contado com o apoio firme do PSDB à desvalorização cambial de janeiro de 1999.

A recomposição discursiva do campo liderado pelo PT só se deu com a consolidação da viabilidade do impeachment. Nesse momento, a economia e o ajuste puderam ser colocados em segundo plano, permitindo o surgimento da narrativa da defesa da democracia. Foi quando começou o curto reino da ideia de narrativa, chave-mestra para a guerra do impeachment.

Do lado do campo favorável ao impeachment de Dilma Rousseff, a unificação do discurso se deu em torno da corrupção. Foi uma continuidade da tentativa feita quando da eclosão do mensalão, retomada quando do julgamento pelo STF em 2012. A estratégia só funcionou depois de dez anos de insistência. A narrativa do campo pró-impeachment procurou identificar a corrupção exclusivamente ao PT e a seu aparelhamento do Estado.

A ideia de narrativa diz que política não é sobre convencer, mas sobre a exigência de estar sempre alerta contra um inimigo insidioso, que procura se infiltrar nas menores brechas do embate de versões para conquistar pessoas desavisadas. Ninguém pode se dar o direito de ignorar esse estado de guerra, as lâminas têm de ser permanentemente afiadas contra um inimigo que não descansa. As palavras são patrulhadas com minúcia detetivesca. Qualquer discurso é suspeito até que pronuncie as senhas que permitem entrar na trincheira: golpe, petralha, coxinha, mortadela.

Com o desenlace próximo do impeachment, o tempo das narrativas terminou. Sobrevive apenas no ritual de cartas marcadas do Senado Federal. E a razão é simples: as narrativas que serviram para mobilizar tropas durante o impeachment não têm serventia no mundo pós-impeachment. No campo contra o impeachment, o eficaz slogan do golpe não dá nenhuma pista para o futuro, não indica possíveis linhas de ação. Na situação atual, aferrar-se à narrativa do golpe como tática política limita a ação à denúncia, sem qualquer outra proposta positiva. Pode até ser uma tática de reconstrução. Mas é uma tática meramente defensiva, pressupõe o diagnóstico de que esse campo será capaz de se recompor em termos eleitorais apenas depois de 2018.

A narrativa pró-impeachment também perdeu seu lastro. O discurso contra a corrupção se enreda na teia universal de desvios escancarada pela Lava-Jato. A realidade do governo Michel Temer é um pesadelo para quem quer que tenha vendido a ideia de passar o país a limpo. A única sustentação efetiva do governo Temer até agora é a ausência de alternativa, somada ao cansaço com o trauma institucional de um impeachment que já fez aniversário de um ano, contado a partir da declaração de Temer de que o país precisava de "alguém" com "capacidade de reunificar a todos".

Em um quadro como esse, a recomposição das forças e dos discursos está longe de ser óbvia. Com menos brutalidade, mas com muitas trapalhadas, o governo atual repete a famosa ameaça de Zagallo: "Vocês vão ter de me engolir". Ao mesmo tempo, não consegue acomodar o arquipélago de forças que o entronizaram.

O campo contra o impeachment está perdido. Sobretudo, está fragmentado, sem qualquer perspectiva de agregação. O PT está inteiramente na defensiva e muitas outras forças querem agora fazer o acerto de contas sempre adiado com o partido que foi o líder do campo da esquerda desde a década de 1990.

Grande parte desses movimentos está se dando de costas para a sociedade. O sistema político continua com a firme convicção de que, em momento de eleições, toda a raiva social acumulada vai ter de se acomodar às opções institucionais que estão aí. É certamente a aposta política mais arriscada que já se viu desde a abertura democrática. 


O divórcio entre a sociedade e o sistema político ainda vai durar muito tempo. E não serão novas narrativas que poderão superar esse divórcio. A esperança que ainda se pode ter é continuar a caçar vagalumes de uma reorganização do debate e das forças políticas que projete imagens de futuro. No momento, o que se tem é apenas a áspera reafirmação de uma realpolitik sem qualquer outro lastro do que a própria sobrevivência do sistema político em sua configuração atual.

Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.



Fica o "fora", cai o "fica" - RUY CASTRO

Segunda-feira, agosto 08, 2016



FOLHA DE SP - 08/08

À sua maneira deliciosamente alienada, desligada de qualquer realidade comprovável e sem o menor compromisso com os fatos, Dilma Rousseff, tendo agora 24 horas diárias de ócio ao seu dispor, começou a trabalhar na última preocupação que lhe resta: o julgamento da história. Ela quer ficar bem na fita diante dos pósteros. Assim, com a mesma desenvoltura com que compunha seus discursos patafísicos na Presidência, imagina poder sepultar no Senado as acusações que lhe fazem.

Ao insistir em que é uma mulher honesta e não fez nada de errado, Dilma continua sem entender que não é a cidadã que está em julgamento, mas a presidente. Isso denota a maneira airosa com que exerceu o cargo e explica por que, sem que ela soubesse -vamos dar-lhe este crédito- armou-se sob o seu nariz uma abismal rede de corrupção. Daí é bom ela não contar com a posteridade. Se ficar provada sua inocência, o futuro a verá como o caso mais agudo de palermice na história da República.

Mas não adianta. O mundo está desabando ao seu redor e Dilma trata as acusações como se estas fossem um surto de caspa que uma ou duas espanadas tirariam de seus ombros. Para isto, basta jogar a culpa nos outros -no caso, o PT. É encantadora a naturalidade com que ela tem transferido aos companheiros a responsabilidade pelo festival de propinas, caixa dois e pagamentos indevidos em suas campanhas presidenciais. Passou até a dizer que o PT precisa reconhecer "os erros que cometeu do ponto de vista das práticas, da ética, do uso de verbas públicas".

Apanhado no contrapé, o PT está tiririca e temos que, em breve, Dilma se verá falando sozinha. Se ela e o partido já se detestavam quando no poder, imagine fora dele.


O PT continuará com o discurso básico de "Fora Temer". Mas já não se ouve de ninguém um "Fica Dilma".


Por que intelectuais odeiam o povo? - LUIZ FELIPE PONDÉ


FOLHA DE SP - 08/08

Por que os intelectuais odeiam o povo? Afirmei isso semana passada em minha coluna ("Bom dia terrorismo!) e muita gente me perguntou a razão disso.

Vejamos um exemplo prático bem atual: Donald Trump.

Todo mundo se pergunta como o povo americano (pelo menos parte importante desse povo) pode votar num cara como Donald Trump. Não vou entrar no mérito do quão "idiota", "palhaço", "populista", "sexista", "racista" muita gente acha que ele é. Se ele é ou não isso tudo, não me interessa aqui.


O que me interessa é que toda a inteligência pública parece concordar que ele mereça todos esses adjetivos. Logo, parece haver uma discordância significativa entre o que pensa grande parte do povo americano e a inteligência pública.

Por que alguém em sã consciência votaria em Donald Trump sendo ele tudo o que achamos que ele seja? Existe a possibilidade de que ele não seja tudo isso de ruim e a inteligência pública esteja errada? Suspeito que não seja esse o caso.

Então, a pergunta que não quer calar é: o povo é burro, pelo menos do ponto de vista da inteligência pública? A resposta é: sim.

Mas o que seria essa "burrice" aqui? Antes, um reparo filosófico importante para deixar clara a razão de eu achar que intelectuais desprezam o povo, suas escolhas, seu mundinho medíocre de consumo, suas jantas, seus programas bregas na TV e suas férias em praias com milhões de pessoas.

Apesar de ter certeza que a democracia é o regime menos pior que conhecemos, não acredito que as pessoas escolham "racionalmente" em quem vão votar. Essa crença é, basicamente, uma lenda. Ninguém vota "racionalmente" –talvez 1% dos eleitores, e porque é gente obsessiva e monomaníaca.

Acho que ninguém está nem aí para política na maior parte do tempo, e quem está, está por taras pessoais do tipo gostar de mandar, mania de grandeza, messianismo ideológico; enfim, taras, e não porque seja excepcionalmente "racional".

Sei que você deve estar querendo saber o que eu quero dizer por votar "racionalmente". Já digo. Lembre-se: como dizia Hegel, conceitos exigem paciência.

Votar "racionalmente" é comparar programas, históricos, coerência de vida e trabalho dos candidatos. Passar algum tempo fazendo essa "pesquisa", discutir com amigos e, principalmente, inimigos, isto é, gente que não concorda com você, enfim, é "trabalhar" para escolher em quem votar.

Conclusão: a maior parte da humanidade que trabalha não tem tempo nem saco para isso. E quem faz, o faz porque é "profissional" militante (e militante, por definição, não é um ser que pensa, mas, sim, um ser obcecado por uma causa). E a coisa que menos importa para ele é comparar propostas, históricos, concepções de mundo. Quer apenas levar os outros a pensar como ele.

Dito isso, voltemos à "burrice". Intelectuais são pessoas que passam a vida pensando, colhendo dados, comparando-os e discutindo com parceiros. Quero dizer, isso seria o ideal. A realidade está, como sempre, entre o ideal e o inferno (mais perto deste do que daquele).

Para além desse ideal, muitos intelectuais se entregaram à falsa paixão pela lenda do "povo racional soberano da democracia", lenda criada pela Revolução Francesa. Mas, como toda lenda, esta fala mais de quem crê nela do que de qualquer outra coisa.

Portanto, os intelectuais recusam o fato de que o povo não vota "racionalmente". Detalhe: ele, o intelectual, também não necessariamente vota "racionalmente", mas a partir de suas taras ideológicas e lenda políticas.

A pergunta a fazermos é: quais são as taras que levam parte do povo americano a votar em Donald Trump?

Tudo de muito humano, demasiado humano: medo, raiva, insegurança, vontade de fazer o mundo parar de girar, fantasia de que a janta será sempre a mesma, com as mesmas pessoas, pânico dos EUA deixar de ser a potência número um, a ilusão de que se pode viver isolado do resto do mundo com barreiras.

Os intelectuais odeiam o povo porque o povo é a humanidade –banal, medrosa, insegura. E os intelectuais amam a ideia de humanidade "racional", mas detestam suas misérias.


Mordaça olímpica - BERNARDO MELLO FRANCO

FOLHA DE SP - 09/08

BRASÍLIA - A vaia no Maracanã foi só o começo. Desde que os atletas entraram em cena, as arenas da Olimpíada viraram palco de protestos contra o governo interino. As manifestações têm sido reprimidas pela polícia. Em ao menos dois episódios, torcedores foram expulsos da arquibancada depois de exibir cartazes com a inscrição "Fora, Temer".



No Rio, um homem foi retirado do Sambódromo por quatro agentes da Força Nacional de Segurança. Ele assistia ao tiro com arco ao lado da mulher e dos filhos. Seu crime: carregar um cartaz contra o presidente interino.



Em Belo Horizonte, a PM expulsou do Mineirão 12 torcedores que assistiam a uma partida de futebol. Eles exibiam cartazes em inglês contra o impeachment e usavam camisetas com letras gigantes, que juntas formavam a expressão "Fora, Temer".


As duas ações foram filmadas com celulares e já somam mais de 3 milhões de exibições nas redes. É bem provável que estimulem novos protestos nos próximos dias.


A organização dos Jogos disse apoiar a repressão policial. "Queremos arenas limpas", afirmou o diretor de comunicação da Rio-2016, Mario Andrada. O comitê alegou que a Lei Geral da Olimpíada, sancionada por Dilma Rousseff, proíbe protestos nas arenas. O texto veta cartazes "com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo", mas afirma que "é ressalvado o direito constitucional ao livre exercício de manifestação".



Além de não ter amparo na lei, a mordaça olímpica contraria a Constituição. Um ministro do Supremo disse à coluna, em caráter reservado, que a proibição de protestos pacíficos caracteriza censura. "Impedir a livre expressão num espaço público é inadmissível", afirmou.


Nesta segunda (9), o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, defendeu a caça aos cartazes. Felizmente, o juiz federal João Augusto Araújo discordou. À noite, ele determinou o fim da repressão nas arenas.



Adeus, projeto criminoso de poder - MARCO ANTONIO VILLA


O GLOBO - 09.08


As sucessivas mobilizações de rua deram o golpe final em um projeto de poder que parecia invencível



Depois de longos 13 anos e cinco meses, o Brasil, finalmente, vai se livrar do projeto criminoso de poder. E, tudo indica, para sempre. Como os “sovietólogos,” que durante décadas estudaram a antiga União Soviética, aqui também os analistas do PT e da conjuntura nacional não conseguiram identificar o momento da crise final de uma forma de fazer política. Os arquivos são implacáveis: basta acessá-los para constatar que davam ao PT, a Lula e às suas alianças políticas uma longevidade que eliminava a História. Era como se o Brasil estivesse condenado, ad eternum, ao domínio petista e Lula fosse o deus ex machina nativo.

A repetição exaustiva dos supostos êxitos petistas, com o apoio da universidade, que fornecia o verniz científico, dava a aparência de que, mesmo com algumas dificuldades, o petismo no poder seria eterno. Tanto o DIP, do Estado Novo, ou a Agência Especial de Relações Públicas (Aerp), do regime militar, nunca alcançaram a eficiência da máquina de propaganda petista. Desta vez, o apoio dos acadêmicos, dos intelectuais, dos jornalistas, dos artistas não necessitou da violência do aparato repressivo. Não. Bastou, para alguns, o dinheiro; para outros, a sensação de que participavam do poder e, para os mais ingênuos, a reafirmação de antigas teses da juventude. O modo petista de governar foi louvado como uma contribuição brasileira para o mundo e Lula, incensado como a síntese das nossas melhores lideranças.

Os “petistólogos” ficaram tão impressionados com a propaganda, que acabaram dando uma sobrevida a uma forma moribunda de fazer política. Mas a história seguiu outro caminho. De um lado, a grave crise econômica, produto da famigerada nova matriz econômica, solapou a possibilidade de manter a base social do regime; as fontes tradicionais de recursos que drenaram para o grande capital bilhões de reais se esgotaram. E a classe média viu encolher seu poder de compra e os seus sonhos de consumo. Já a base da pirâmide sentiu os efeitos da inflação e do desemprego.

O autoconvencimento petista de que permaneceriam eternamente no poder e que controlavam o Judiciário — portanto, estariam salvaguardados frente aos atos de corrupção — fez com que ampliassem em escala nunca vista o saque do Estado brasileiro. O petrolão é apenas uma das faces do leninismo tropical, modo petista de governar, subornar e destruir os fundamentos do estado democrático de direito. A corrupção tomou o aparelho de Estado. Sem esquecer que socializaram seus beneficiários.

A ação da Justiça foi fundamental para desvelar o projeto criminoso de poder. Não bastou a Ação Penal 470, o processo do mensalão. As suaves condenações do núcleo político estimularam a corrupção. Não custa recordar que recursos do petrolão foram usados para pagar multas de sentenciados no mensalão, como no caso de José Dirceu. Decisivo foi o papel da 13ª Vara Federal do Paraná. A ação coordenada da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do juiz Sérgio Moro apresentou para o país o Brasil petista. As severas condenações determinadas pelo juiz Moro — e referendadas, quase todas elas, na segunda instância, em Porto Alegre — deram o combustível político para o enfraquecimento da legitimidade do bloco que estava no poder desde janeiro de 2003.

Mas não foram suficientes as crises econômica e ética. O governo de então contava com a passividade popular. Com a crítica vazia, estéril, com os rebeldes do sofá. A surpresa veio a 15 de março de 2015, quando as ruas do Brasil foram tomadas por milhões de manifestantes. Era o novo na política. A combinação da forte presença das redes sociais e de uma nova forma de organização de fazer política — longe dos partidos políticos. E as sucessivas mobilizações de rua, rompendo também com o passado — o velho comício, onde o povo não passa de participante passivo —, deram o golpe final em um projeto de poder que parecia invencível.

Apesar de todos estes fatores, analistas insistiam em dar sobrevida ao petismo. Superavaliaram a capacidade de organização do partido e de seus asseclas. Deram aos movimentos sociais, mantidos por verbas públicas, um poder que nunca tiveram. Iriam incendiar o país, inviabilizar as ações oposicionistas e despertar a base social do lulismo, os mais pobres. Nada disso aconteceu. As mobilizações foram pífias. Sem as benesses estatais, nada são. E as centrais sindicais que falaram até em greve geral?

O afastamento definitivo de Dilma Rousseff vai ocorrer em clima de absoluta tranquilidade. O país não aguenta mais o PT, sua forma de governar, de fazer política. Seus líderes viraram motivo de piadas. Lula, hoje, não passa de uma figura caricata. Sua maior preocupação é escapar da prisão. O PT apresenta claros sinais de divisão, que, tudo indica, deve ocorrer após as eleições de outubro. Isto se o partido não tiver cassado seu registro, pois violou inúmeras vezes a Lei 9096/95.

O julgamento de Dilma, de acordo com a Constituição, vai ocorrer sob a presidência do presidente do STF. É de conhecimento público que Ricardo Lewandowski não chegou à Suprema Corte pelos seus dotes jurídicos. Foi escolhido por razões paroquiais, de São Bernardo do Campo, onde começou sua carreira política. Se Rui Barbosa foi chamado de Águia de Haia, Lewandowski pode ser considerado o ministro da rota do frango com polenta — região de restaurantes daquela cidade onde se saboreia tal iguaria. E, suprema ironia da História, será ele que vai presidir o impeachment. Mais ainda, vai presidir o sepultamento político do seu amigo Luiz Inácio Lula da Silva.


Marco Antonio Villa é historiador



Tiros no pé - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 09/08

O senador petista Lindbergh Farias, exercendo seu papel de líder da oposição no Senado, tenta mais uma manobra para suspender o processo de impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, alegando que o presidente interino, Michel Temer, ganhará imunidades constitucionais caso Dilma seja afastada definitivamente, e não poderá ser investigado pela denúncia de que recebeu R$ 10 milhões da empreiteira Odebrecht, conforme constaria da delação premiada de Marcelo Odebrecht.

Há, para início de conversa, controvérsia sobre as imunidades de Temer mesmo no exercício da Presidência. Constitucionalista respeitado que é, Temer tem a exata noção de seus direitos e da controvérsia em torno deles. Há especialistas que consideram que no exercício do cargo, mesmo sendo interino, Temer já não poderia ser investigado por fatos anteriores, assim como Dilma não pode ser investigada por fatos ocorridos quando exercia a chefia da Casa Civil, por exemplo, e até mesmo em seu primeiro mandato.

Mas há constitucionalistas como Thomaz Pereira, professor da Fundação Getulio Vargas no Rio, que acha o contrário. Ele está publicando um artigo hoje no site jurídico Jota, em que defende a tese de que "(...) No momento, Temer ainda é vice-presidente. Esse é o seu cargo. Com isso, não tem ainda imunidades presidenciais. Pode ser denunciado na Câmara por crime de responsabilidade por qualquer cidadão - como já foi. Mas pode também ser processado por fatos anteriores ao seu mandato e estranhos às suas funções. O foro é o Supremo. E, ao contrário do presidente da República, a denúncia no Supremo não exige autorização dos deputados. Depende apenas do procurador-geral da República e do tribunal. Caso haja indícios suficientes para fundamentar uma denúncia, o período de interinidade de Temer é uma janela importante para atuação dessas instituições".

Argumentando que "A responsabilidade vem da função, a imunidade vem do cargo", Thomaz Pereira acha que, efetivado no cargo, quanto aos crimes comuns, "Temer de fato estaria temporariamente imune quanto aos atos alheios às suas funções - mas apenas esses". Mas acha que Temer ainda poderia ser julgado por crimes de responsabilidade que tivesse cometido quando vice-presidente no exercício da Presidência, como no caso dos decretos assinados por ele, alegadamente do mesmo tipo dos assinados por Dilma que estão em julgamento no Senado: "Vice não assina decretos. Apenas o presidente - no caso, em exercício - o faz. Ou seja, a função exercida por Temer era a mesma, antes e depois do afastamento de Dilma. Mesmo se presidente, Temer ainda poderia sofrer impeachment por atos cometidos no cargo de vice, mas na função presidencial. Afinal, a responsabilidade vem da função".

Esse é um tema tão controverso que o Tribunal de Contas da União (TCU) não analisa as contas do vice-presidente, porque considera que até mesmo os decretos assinados por ele são de responsabilidade do titular do cargo. Além dessa controvérsia, que por si só mostra como seria difícil conseguir uma decisão do STF favorável à suspensão do processo de impeachment, há a questão política. A tese do senador Lindbergh Farias é um tiro no pé, no seu próprio, e no da presidente afastada.

Lindbergh é também alvo de denúncias de delações premiadas no âmbito da Lava-Jato, assim como sua companheira petista senadora Gleisi Hoffmann. Os dois, por esse critério, não poderiam fazer parte da comissão de impeachment. Além disso, Dilma está sendo citada em diversas delações premiadas por uso de caixa 2 e financiamento com dinheiro de propinas nas campanhas presidenciais.

Na mais recente e devastadora, o marqueteiro João Santana diz que combinou com ela, pessoalmente, os termos dos pagamentos no exterior. Aliás, as delações, fora poucas e honrosas exceções, estão atingindo praticamente todos os partidos, entre eles o PSDB, que teve seus principais líderes acusados em diversos depoimentos - o presidente do partido, Aécio Neves, e o ministro das Relações Exteriores, José Serra.

É uma boa oportunidade, comprovando-se ou não as denúncias, para alterar a legislação sobre o caixa 2 em campanhas. Como disse o juiz Sérgio Moro, o caixa 2 é uma trapaça eleitoral, e como tal deveria ser considerado um crime comum.



A cultura do feriado - CARLOS ANDREAZZA


O GLOBO - 09/08

Será razoável que se tenha tornado natural como bala perdida que uma autoridade imponha toque de recolher e diga quando as pessoas podem circular?



A cerimônia de abertura da Olimpíada teve três ausências muito educativas sobre o estado de calamidade do Rio de Janeiro: Lula, Sérgio Cabral e Eike Batista. Quem diria, em 2009, que esses três então heróis-estadistas mal pudessem, em 2016, botar a cara na rua, muito menos dar pinta no Maracanã?

Sejamos mais precisos, porém. Quem quer que se lembre do dia 2 de outubro de 2009 — aquele, redentor, em que, no reino da Dinamarca, a cidade foi escolhida sede dos Jogos ora em curso — deveria refletir sobre por que viemos parar aqui (e eles, quase lá), e sobre como não é acaso que coincidam um evento esportivo tão extraordinário e a própria decomposição do Rio, do Brasil.

Passados quase sete anos daquela fantasia em Copenhagen, o trio de heróis-fanfarrões derreteu — o BNDES minguou (subnutrindo os campeões nacionais do petismo), a Petrobras, saqueada, afundou (fazendo emergir a mentira lulista do pré-sal), as UPPs, farsa prolongada, já não existem nem como mistificação — e o Rio de Janeiro, ainda enganado-adiado pelo doping de um legado, logo tombará deprimido, com metrô, VLT, Porto Maravilha e tudo mais. Por quê?

A explicar e consolidar a história toda, a própria natureza do homem público brasileiro: a impostura. Nunca houve tanta, de todos os lados, desde todas as esferas de poder, quanto nos anos em que o Rio fingiu preparar-se para funcionar. (Falaram até em Barcelona, o modelo, isso enquanto, ali ao lado, fabricavam Macaé.) É ela, a impostura, a responsável pela miséria de estarem tantos entre os apaixonados pela Olimpíada — no momento mesmo em que ocorrem — preocupados com o que virá depois.

E como não?

Se é verdade que eles, os heróis derretidos, estão politicamente mortos, certo é também que aquilo que representam não será enterrado enquanto não enfrentarmos a realidade e estourarmos a bolha que ainda hoje o sobrevivente Eduardo Paes infla: a de que a Olimpíada, maior evento da história do país, acontecimento espetacular, é conquista de mentiras erguidas como ciclovia, e a de que a conta político-econômica de tamanho conjunto de irresponsabilidades — que reproduzirá sobre o município, em brevíssimo, a mesma falência que ora dilapida o Estado do Rio — pesará novamente sobre nós, leitor.

Ou você acredita na propaganda eleitoral de que as finanças da cidade estão sob controle? Se sim, os estelionatos marqueteiros de Dilma Rousseff e Cabral-Pezão nada lhe terão ensinado.

Prestemos atenção. Nós já pagamos o preço – na escassez de segurança, no sucateamento de hospitais e escolas — faz mais de dois anos. Há, contudo, um símbolo presente para essa fatura. Algo talvez banal (para uma população que se acostumou a avaliar riscos antes de pegar uma linha vermelha da vida), mas muito significativo. Porque não importa quanto investimento se faça em infraestrutura se — depois de todos os transtornos, na chamada hora H — o cotidiano das pessoas fica ainda mais comprometido. Ou será razoável que se tenha tornado natural como bala perdida que uma autoridade imponha toque de recolher e diga quando as pessoas podem circular? Nada contra a Família Olímpica. Tudo contra a barbaridade de que, para ela desfilar, nós devamos restar em casa. Que mensagem se quer passar com isso?

Que clima olímpico — que espírito pacificado — querem de nós, se o Rio de Janeiro, mais sitiado que nunca, está armado para uma guerra? Não há legado que legitime um estado de exceção. Ou será errado dar nome às coisas?

Penso também na indecência em que consiste este recurso de decretar feriados. Era como fazíamos nas brincadeiras de moleque, diante de um aperto, ao gritar “altos!” — e ainda lá, na farra infantil, algo de imoral havia naquilo. “Altos” é ao que nos obriga o prefeito — para disfarçar o caos, para camuflar a incompetência, a falta de planejamento. O país está quebrado, parado. A cidade, a poucos meses de se enxergar traída, vendida. Mas, ainda assim, os governantes decidem enfrentar a impossibilidade urbana multiplicando feriados.

É quase tudo que a cultura estatista pode oferecer. O resto está no chororô de se declarar falido para esmolar mais dinheiro público. É a melhor síntese da onipresença do governo entre nós: enfezou, faltou, imprimam-se reais, aumentem-se os impostos. Complicou, embolou, meta-se um canetaço e determinado estará que o cidadão não pode trabalhar, que as empresas não podem produzir.

Curiosamente, no entanto, a galera vibra nas arquibancadas. É como se o menino das argolas, a própria personificação da certeza, a definição exata de estabilidade, caísse, falhasse — e a torcida nacional comemorasse o tombo como um gol do Pelé. Claro. Um novo feriado é inveja no coração do brasileiro de outras partes e medalha de ouro no peito do carioca, quando a festa do esporte vira carnaval, micareta. Não importa se for também evidente programa de aceleração do desemprego. Depois a gente vê.

Carlos Andreazza é editor de livros