terça-feira, 30 de outubro de 2018

Valor Econômico – Políticos assassinos / Coluna / Jeffrey Sachs

29/10
 
"Ninguém vai me livrar deste padre intrometido?", perguntou Henrique II ao instigar o assassinato do arcebispo de Canterbury, Thomas Becket, em 1170. Ao longo dos séculos, presidentes e príncipes do mundo inteiro foram assassinos e facilitadores de assassinatos, como documentaram o grande sociólogo de Harvard, Pitirim Sorokin, e Walter Lunden, com rico detalhamento estatístico, em sua obra-prima "Power and Morality". Uma das principais descobertas deles foi a de que o comportamento dos grupos no poder tende a ser mais criminoso e imoral que o das pessoas sobre as quais exercem esse poder.
 
O que os governantes mais almejam é não terem de responder pelos malfeitos de outros. Mas, com o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi por seu próprio governo, o envenenamento dos ex-espiões russos que viviam no Reino Unido e rumores de que o chefe da Interpol, Meng Hongwei, pode ter sido executado na China, a máscara tem caído mais frequentemente que o comum ultimamente. Em Riad, Moscou e mesmo Pequim, a classe política tenta, precipitadamente, encobrir seus métodos letais.
 
Mas ninguém tem direito de se fazer de santo nessa esfera. Os presidentes americanos têm uma longa história de assassinatos, algo pouco tendente a preocupar o atual ocupante do cargo, Donald Trump, cujo predecessor preferido, Andrew Jackson, (que governou o país de 1829 a 1837) foi um assassino frio, senhor de escravos e praticante da limpeza étnica de americanos nativos. Para Harry Truman, o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima o poupou dos custos provavelmente elevados de invadir o Japão. Mas o lançamento da segunda bomba atômica, sobre Nagasaki, foi totalmente indefensável e foi feito por puro embalo burocrático: ocorreu aparentemente sem a ordem explícita de Truman.
 
Desde 1947, a não responsabilização dos presidentes por assassinatos tem sido facilitada pela CIA, que fez as vezes de exército secreto (e, às vezes, de grupo de extermínio) para os presidentes americanos. A CIA tem participado de assassinatos e lesões corporais em todas as partes do mundo, com quase nenhuma supervisão ou responsabilização por seus incontáveis assassinatos.
 
Muitos assassinatos em massa realizados por presidentes envolveram as forças armadas convencionais. Lyndon Johson escalou a intervenção dos EUA no Vietnã sob o pretexto de um ataque, dos norte-vietnamitas, no Golfo de Tonkin, que nunca aconteceu. Richard Nixon foi além: ao desfechar bombardeios maciços sobre Vietnã, Cambodja e Laos, ele tentou instilar na União Soviética o medo de que ele era um líder irracional capaz de qualquer coisa. No final, a guerra americana de Johnson e Nixon na Indochina custou milhões de vidas inocentes.
 
As matanças em massa no Iraque sob o governo George W. Bush são mais conhecidas, porque a guerra, capitaneada pelos EUA, foi feita para a TV. Um país supostamente civilizado empenhado em espalhar "choque e pavor" para derrubar o governo de outro país com base em acusações total e deliberadamente falsas. Centenas de milhares de civis iraquianos morreram.
 
Os EUA se orgulham de ser uma democracia constitucional, mas, na política externa, o presidente pouco se diferencia de um déspota. O domínio de uma só pessoa nessa esfera, como nos EUA e na Arábia Saudita, é quase garantia de grande derramamento de sangue
 
Barack Obama era atacado em amplos círculos pela direita por ser brando demais, mas ele também computou um alto número de mortos. Seu governo aprovou reiteradamente ataques de drones que não mataram apenas terroristas, como também inocentes e cidadãos americanos contrários às sangrentas guerras movidas pelos EUA em países muçulmanos. Ele firmou a determinação presidencial que autorizou a CIA a colaborar com a Arábia Saudita na derrubada do governo sírio. Aquela operação "secreta" levou a uma guerra civil em curso que resultou em centenas de milhares de vítimas fatais civis e em milhões de pessoas desalojadas. Ele usou os ataques aéreos da Otan para derrubar Muammar Gaddafi, o que resultou num governo fracassado e na violência crônica.
 
Sob o governo Trump, os EUA apoiaram os assassinatos em massa (inclusive de crianças) da Arábia Saudita no Iêmen ao vender-lhe bombas e armas avançadas com quase nenhum conhecimento, supervisão ou responsabilização pelo Congresso ou pela opinião pública.
 
Quando a máscara cai, como ocorreu com o assassinato de Khashoggi, vemos, brevemente, o mundo tal como é. Um colunista do "Washington Post" é atraído para uma morte brutal e esquartejado pelo "aliado" próximo dos EUA. A grande mentira americano-israelense-saudita de que o Irã está no centro do terrorismo mundial, uma afirmação refutada pelos números, é posta em xeque, por pouco tempo, pela constrangedora revelação do pavoroso fim de Khashoggi. O príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, ostensivamente o mandante da operação, é encarregado de "investigar" o caso; os sauditas afastam devidamente algumas altas autoridades; e Trump, o mestre nas mentiras incessantes, reproduz hiperbólicas histórias sauditas sobre uma operação independente.
 
Alguns dirigentes de governos e de empresas adiaram visitas à Arábia Saudita. A lista das retiradas anunciadas de uma reluzente conferência de investimentos é um "quem é quem" do complexo militar-industrial dos EUA: altos dirigentes de bancos de Wall Street, executivos-chefes de grandes empresas de mídia e graduadas autoridades de empresas de fornecimento de produtos e serviços militares, como o diretor de defesa da Airbus.
 
Os EUA se orgulham de ser uma democracia constitucional, mas, na esfera da política externa, o presidente pouco se diferencia de um déspota. Trump acaba de anunciar a retirada dos EUA do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário sem sequer mencionar o Congresso.
 
Os cientistas políticos deveriam testar a seguinte hipótese: países encabeçados por presidentes (como os EUA) e por monarcas não constitucionais (como a Arábia Saudita), e não por parlamentos e premiês, são especialmente vulneráveis a uma política assassina. Os parlamentos não são garantia de contenção, mas o domínio de uma só pessoa sobre a política externa, como nos EUA e na Arábia Saudita, é quase garantia de enorme derramamento de sangue.
 
Os americanos estão, com razão, horrorizados com o assassinato de Khashoggi. Mas os métodos assassinos de seu próprio governo talvez não se diferenciem em nada. A expansão dos assassinatos patrocinados por governos não é desculpa para tratar o assassinato como coisa aceitável, jamais. É, em vez disso, argumento para submeter o poder a rígidas limitações constitucionais e, principalmente, à legislação internacional, como a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Essa é nossa única esperança verdadeira de sobrevivência e de segurança em um mundo em que o recurso gratuito à violência pode facilmente ser o fim de todos nós. (Tradução de Rachel Warszawski)
 
Jeffrey D. Sachs é professor de Desenvolvimento Sustentável, de Política e Gestão de Saúde e diretor da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. Copyright: Project Syndicate, 2018.