Redigido originalmente como apostila do Seminário de Filosofia
,
este ensaio foi recusado pela Folha de S. Paulo
sob o pretexto de que
citava de passagem um autor desconhecido do público paulista (o psicanalista
Joel Birman), e em seguida recusado pela revista Bravo!
sob a alegação
de que já fora oferecido à Folha de S. Paulo
. — O.
de C.
Eugen Rosenstock-Huessy observava em
Carta Magna Latina (1974) que,
se você diz "iiii" e o seu interlocutor repete o mesmo som, vocês
estão se comunicando como animaizinhos imersos num estado anímico
comum, mas que, se você diz "Escute!" e ele responde "Estou escutando",
então vocês entraram no mundo da comunicação humana,
graças ao milagre da linguagem articulada.
Na linguagem articulada os
papéis do falante e do ouvinte estão perfeitamente diferenciados:
um falante
responsável comunica uma mensagem
respondível
a um ouvinte
respondente. É só a partir desse nível
de comunicação que os seres humanos podem narrar e perpetuar,
prometer e cumprir, planejar e realizar, concordar e colaborar, erguer enfim,
sobre a base da natureza, a ordem da História.
A linguagem articulada
dá ao homem a possibilidade de conceber o futuro com base na experiência
dos ancestrais e abre para o indivíduo uma existência num plano
temporal superior ao de sua duração biológica, num espaço
mais vasto que o da sua ação física.
Originada nos ritos
e nos cantos épicos, a linguagem articulada encontra sua plena expressão
na linguagem
formal — o idioma das leis, da filosofia, das ciências,
dos debates públicos — onde a máxima clareza na atribuição
das responsabilidades termina de libertar os indivíduos de seu isolamento
e lhes dá a possibilidade de tomar parte consciente na vida histórica
da sociedade inteira.
Na sociedade organizada, porém, quando a linguagem formal já
cumpriu os seus fins, os seres humanos podem vir a se esquecer de quanto ela
é necessária para instaurar e conservar o mundo histórico
de cujos frutos maduros eles se beneficiam. Então dissemina-se uma forma
mais relaxada de comunicação, a fala
informal — uma linguagem
cheia de elipses, de hiatos, de subentendidos, com a qual o indivíduo
só pode se comunicar com os seus próximos, mas não com
a sociedade maior, com a sociedade
política.
Se não regride
à comunicação inarticulada, a linguagem informal dissolve
a malha de distinções entre sujeito e objeto, falante e ouvinte,
criando um agradável sentimento de intimidade cúmplice na mesma
medida em que nebuliza a distribuição de papéis e obscurece
a atribuição de responsabilidades.
Um dos traços principais da comunicação informal é
o seu caráter
elíptico: o falante, saltando os nexos lógicos
intermediários, vai de uma idéia a outra sem ter de conservar
a memória do trajeto e sem ter de responder pela confiabilidade das vias
por onde conduz o ouvinte; e este, envolvido numa atmosfera de identificação
emocional confusa, se deixa levar como se fosse ele próprio o falante.
A comunicação informal, ou pós-articulada, tem as delícias
da convivência espontânea e "natural", mas, por isto mesmo, devolve
o homem à impotência do animalzinho no mundo natural, destituído
dos meios de ação próprios do mundo histórico.
Se a comunicação informal dominasse todos os setores da atividade
humana, a sociedade se veria paralisada pela impotência diante de um caos
inabarcável. Um medo difuso tomaria conta de tudo e nenhuma ação
eficiente seria possível. Por isto mesmo, a comunicação
informal fica geralmente restrita às famílias, aos pequenos grupos,
ou, na mais ambiciosa das hipóteses, ao mundo das diversões, ao
passo que a linguagem formal continua imperando nas altas esferas do poder,
na ciência, nos debates parlamentares, nos tribunais.
Se um juiz não
pode aceitar uma petição escrita em gíria, não é
por uma questão de gosto, mas porque as petições têm
de possuir um sentido uniformemente apreensível para todos os juizes,
sem as elipses e as conotações escorregadias da linguagem familiar,
grupal ou local. Assim como a linguagem informal é a condição
da intimidade pessoal entre os amigos e familiares, a linguagem formal é
a condição da ordem, da justiça e da liberdade na sociedade
política.
Quando a linguagem informal invade os domínios superiores da sociedade
política, isto indica que aí o senso das responsabilidades vai
desaparecendo, que a liderança procura fugir a toda cobrança ocultando-se
por trás de uma comunicação elíptica onde aquele
que ouve é induzido subrepticiamente a endossar decisões que nem
tomou nem compreendeu, onde espectadores inocentes acabam carregando sobre suas
costas a culpa por erros que não cometeram, e onde, portanto, um sentimento
de injustiça generalizada acaba por minar toda confiança na possibilidade
de uma ordem justa — uma situação oprimente que todos agravam
mais ainda buscando alívio na busca obsessiva de bodes expiatórios:
o clamor geral contra a impunidade é tão destrutivo quanto a impunidade
mesma.
É uma situação alarmante, sem dúvida, e é
inequivocamente a situação brasileira. Poderíamos buscar
as causas remotas desse estado de coisas na progressiva dilapidação
do idioma, na revolta frívola de beletristas contra as normas gramaticais,
em todo um longo trabalho de sabotagem das linhas de comunicação
formal empreendido por intelectuais irresponsáveis que preferem antes
lisonjear o povo do que servi-lo pelo exercício honesto de suas altas
funções. Não se deve excluir nem mesmo a hipótese
de uma ação consciente a serviço de interesses antinacionais.
Mas, deixando para outra hora essa investigação interessantíssima,
limito-me a observar que as esferas superiores da decisão humana não
podem ser invadidas pela comunicação informal
em estado puro.
As gírias, os erros de gramática, os hiatos lógicos mais
clamorosos não poderiam, sem mais, entrar nesses domínios, pois
seriam identificados e denunciados à primeira vista. Para que a informalidade
com todo o seu cortejo de confusões desnorteantes e nebulosidades dissolventes
tome de assalto o comando da sociedade e instaure a irresponsabilidade generalizada,
ela precisa primeiro paramentar-se de certos adornos que a façam passar
por uma linguagem aceitável nos círculos de gente importante:
ela tem de tomar a forma de uma
falsa linguagem formal.
Criar uma falsa linguagem formal é relativamente simples.
Em toda sociedade, há vários dialetos, profissionais e grupais,
que se distinguem por um vocabulário próprio e pelo seu alto grau
de formalização. A linguagem científica é um exemplo.
Cada ciência tem não somente sua terminologia apropriada mas também
um conjunto de esquemas expositivos mais ou menos padronizados. O vocabulário
facilita o reconhecimento automático dos significados, fora de toda nebulosidade
subjetiva, e os esquemas padronizados de argumentação e prova
permitem a rápida aferição dos pressupostos, dos nexos
intermediários do raciocínio e, enfim, de todos os requisitos
para uma avaliação correta da veracidade ou falsidade das alegações.
Para construir uma falsa linguagem formal, basta tomar o vocabulário
padronizado de uma determinada área de estudos, mas usá-lo em
sentenças construídas à moda informal, com muitas elipses,
hiatos e subentendidos, aproveitando para inserir nesses intervalos todas as
opiniões pessoais ou grupais a que o autor, por malícia, deseje
conferir o prestígio de crenças universalmente admitidas. Isso
torna quase impossível ao leitor comum — e mesmo ao estudioso, se principiante
— averiguar a veracidade ou falsidade das afirmações, porque para
isto seria preciso explicitar todos os passos lógicos elididos e todos
os pressupostos ocultos, o que requer o domínio de técnicas bastante
sofisticadas.
Por outro lado, o vocabulário especializado dá ao
texto um ar de respeitabilidade intelectual (o prestígio do autor também
ajuda), de modo que o leitor, quando lhe escapa algum nexo, supõe instintivamente
tratar-se de algo tão simples para os dominadores do assunto que não
tem de ser explicitado.
Em parte por confiar nesta hipótese, em parte
pelo temor de fazer perguntas que revelem sua ignorância sobre aquilo
que ele supõe ser óbvio e patente para os outros, ele acaba por
atribuir à sua própria inabilidade ou incultura o parco entendimento
dessas transições obscuras e, para escapar de um angustiante sentimento
de inferioridade, decide aceitar tudo junto — o que compreende e o que não
compreende, o que foi dito e o que foi omitido.
Em vez de cobrar do escrito
o rigor que seria exigível de uma argumentação filosófica
ou científica, ele se esforça para "entrar em sintonia" com o
texto, para colocar-se no seu "estado de espírito" — como um calouro
que busca amoldar-se ao novo ambiente absorvendo por osmose a linguagem dos
mais experientes. A leitura torna-se, assim, uma busca de afinidades aparentes.
Se o autor for esperto, espalhará ao longo do texto vários "sinais
de reconhecimento", quase senhas ou palavras-de-passe, que induzam o leitor
a confirmar que, malgrado a seu precária compreensão desta ou
daquela passagem, há perfeita harmonia entre seus sentimentos pessoais
e o "sentido geral" do texto. A leitura deixa de ser uma reflexão para
se tornar sugestão hipnótica de afinidades ilusórias.
Se o leitor parasse para examinar o texto mais detidamente, veria que comeu
gato por lebre, que foi levado a aceitar mil e uma absurdidades sem se dar conta,
que foi enganado por um hábil manipulador, que sua inteligência
foi desrespeitada e aviltada ao ponto de ser levada a crer, meio às tontas,
em afirmações que não aceitaria de maneira alguma se o
sentido delas fosse explicitado.
Vou dar dois exemplos. O primeiro encontra-se logo no início do livro
do psicanalista Joel Birman,
Cartografias do Feminino (São Paulo,
Editora 34, 1999):
"Este livro condensa no fundamental o meu caminho teórico pelo
território da feminilidade em psicanálise, no qual se pode
apreender em estado nascente as diferentes etapas que marcaram esse percurso.
Assim, da leitura crítica do conceito de sexualidade, passando pelas
experiências corpóreas do desnudamento e da exibição
[etc. etc.], aventurei-me sempre pelo universo enigmático
da feminilidade."
Com essas palavras, o leitor é, de chofre, jogado no meio de um universo
fascinante no qual as especulações de um teórico assumem
o atrativo mágico de experiências carregadas de alto erotismo.
Esse tipo de atmosfera verbal domina cada vez mais os debates sobre psicologia,
sexo, feminismo.
Como se obtém esse efeito? Basta explicitar os nexos lógicos
subentendidos para verificar que aquilo que o leitor acaba de engolir é
de uma absurdidade grotesca: um caminho teórico, uma sucessão
de visões intelectuais, não poderia de maneira alguma abranger
"a experiência corpórea do desnudamento e da exibição",
pois quem vivencia corporalmente essa experiência é apenas a mulher
que se desnuda e exibe, e não o teórico que pensa sobre o assunto.
Excluída a hipótese de que o autor tenha atravessado um estado
temporário de conversão transexual, exibindo-se para uma platéia
de machos e depois voltando à condição masculina para meditar
sobre o acontecido, o que o Dr. Birman quer dizer, quando afirma que seu caminho
teórico "passou pela experiência corpórea do desnudamento
e da exibição", é, precisamente, que
não passou
de maneira alguma por essa experiência e que, como qualquer outro
teórico destituído de atrativos mágicos, se limitou a pensar
uma experiência alheia, na prosaica assexualidade do seu estúdio.
Apenas, se ele dissesse as coisas assim, o falso encanto da sua escrita se desvaneceria.
O estilo expositivo birmaniano deve seu atrativo a uma confusão viciosa
entre o sujeito e o objeto das afirmações: a especulação
teórica que pensa o desnudamento da mulher torna-se "experiência
corpórea" da mulher que se desnuda. A confusão de sujeito e objeto
induz por sua vez à confusão entre autor e leitor, numa espécie
halo de cumplicidade onde já não se sabe mais quem disse e quem
ouviu, quem sugeriu e quem supôs.
Por outro lado, espalhando no texto
alguns sinais de simpatias feministas discretas, o Dr. Birman obtém facilmente
da leitora atraída por essas idéias uma adesão atmosférica
que a faz engolir, junto com a ideologia feminista que aceita, também
um raciocínio absurdo que, se o percebesse, não aceitaria de maneira
alguma. Nesse tipo de escrita e de leitura, o senso crítico vai sendo
cada vez mais deprimido em favor da cumplicidade promíscua no engano
mútuo, de modo que, no fim das contas, o que interessa não é
saber o que o autor disse ou não disse, mas sim apenas confirmar se,
no geral, ele é "um de nós" ou "um estranho".
Enfim, só
as senhas importam. Tão perverso é esse mecanismo, que o próprio
leitor, mesmo chegando a uma quase consciência de que está sendo
ludibriado, pode preferir relevar esse "mero detalhe" para não estragar
a ilusão de assentimento em que tanto se compraz.
Esse é o estilo da mistificação, e esse vem se tornando,
cada vez mais, o estilo dominante da argumentação acadêmica
no Brasil.
Vamos ao segundo exemplo. Em
Que É Ideologia? (São Paulo,
Brasiliense, 31
a. ed., 1990), D. Marilena Chauí empreende
provar que o senso comum nos engana ao mostrar-nos como um mundo de "coisas"
uma realidade que se constitui, no fundo, de relações de poder:
"O real não é constituído por coisas. Nossa
experiência direta e imediata nos leva a imaginar que o real é
constituído por coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é,
de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à
nossa percepção e às nossas vivências.
"Assim, por exemplo, costumamos dizer que uma montanha é real
porque é uma coisa.
No entanto, o simples fato de que essa "coisa’
possua um nome, que a chamemos "montanha", indica que ela é, pelo
menos, uma "coisa-para-nós", isto é, algo que possui um sentido
em nossa experiência. Suponhamos que pertencemos a uma sociedade cuja
religião é politeísta e cujos deuses são imaginados
com formas e sentimentos humanos, embora superiores aos dos homens, e que
nossa sociedade exprima essa superioridade divina fazendo com que os deuses
sejam habitantes dos altos lugares. A montanha já não é
uma coisa: é a morada dos deuses. Suponhamos, agora, que somos uma
empresa capitalista que pretende explorar minério de ferro e que
descobrimos uma grande jazida numa montanha.
Como empresários, compramos
a montanha, que, portanto, não é uma coisa, mas propriedade
privada. Visto que iremos explorá-la para obtenção
de lucros, não é uma coisa, mas capital. Ora, sendo propriedade
privada capitalista, só existe como tal se for lugar de trabalho.
Assim, a montanha não é coisa, mas relação econômica
e, portanto, relação social. A montanha, agora, é matéria-prima
num conjunto de forças produtivas, dentre as quais se destaca o trabalhador,
para quem a montanha é lugar de trabalho. Suponhamos, agora, que
somos pintores. Para nós, a montanha é forma, cor, volume,
linhas, profundidade — não é uma coisa, mas um campo de visibilidade."
O leitor, conduzido pela mão segura da mestra, tem aí a impressão
de haver superado a crença ingênua, "coisista" e estática
do senso comum e ascendido a uma visão superior onde as pretensas coisas
revelam ser, na verdade, criações culturais, reflexos cambiantes
do processo histórico. Isso vale por um rito iniciático. Ao chegar
em casa, o neófito já olha com desprezo o pai e a mãe que
ainda imaginam viver num mundo de coisas, de realidades objetivas estáticas,
enquanto ele já sabe que uma montanha não é coisa e sim,
conforme o momento histórico, morada dos deuses, relação
econômica e campo de visibilidade.
Como se obtém esse efeito? Basta confundir, pela magia do estilo elíptico,
a mudança do posto de observação do sujeito com a mudança
da natureza do objeto. Assim, a montanha já não é uma
coisa
que, para uma determinada tribo,
adquire a função de morada
dos deuses. Não: para se tornar morada dos deuses, ela
deixa de ser
coisa. Não mudou de significado, de valor, de função:
mudou de
natureza — como se os deuses pudessem morar numa não-coisa;
como se, para instalar residência numa montanha, devessem suprimir a sua
coisidade; como se não fosse extraordinariamente difícil, mesmo
para seres divinos, residir num mero ponto-de-vista.
O capitalista, em seguida, realiza milagre maior ainda: deixando (novamente)
de ser coisa, a montanha transforma-se em "relação econômica".
Notem bem a elipse: a montanha já não é uma coisa que,
no quadro da indústria capitalista, serve de objeto a uma relação
econômica. A montanha é
a própria relação
econômica, não o objeto dela. Como se uma relação
econômica pudesse não ter objeto nenhum ou ser objeto dela mesma,
e como se um objeto qualquer, para ser matéria-prima industrial, não
tivesse de ser, antes de tudo e primordialmente, alguma
coisa.
O operário,
então, supera o capitalista na escala do miraculoso: baixa a picareta
numa relação econômica, extrai minério de ferro de
uma abstração lógica e, enfim, como Deus na criação
ex nihil, produz de uma não-coisa uma coisa.
Finalmente, para o pintor, a montanha também não é coisa,
mas um "campo de visibilidade". É extraordinário: o objeto visto
e pintado já não é uma coisa abrangida por um campo de
visibilidade, mas é
o próprio campo de visibilidade, sem
coisa nenhuma dentro. No seu campo de visibilidade o pintor enxerga um campo
de visibilidade, provavelmente pintando, em vez de quadros, campos de visibilidade.
Resta apenas perguntar se o esperto
marchand, ao fingir que vende um
quadro, não está de fato passando ao ingênuo comprador apenas
um campo de visibilidade ou talvez uma pura relação econômica,
em ambos os casos sem coisa nenhuma dentro.
Em suma, o que se faz nesse texto é induzir o leitor a tomar como se
fosse uma autêntica superação dialética do senso
comum o que não passa de uma grosseira confusão entre a categoria
da
substância e a categoria da
paixão, entre o que
um ente é e as ações que ele pode sofrer, como se a possibilidade
de sofrer tais ou quais ações não fosse, para o ente, mera
propriedade ou acidente, e como se, em suma, o cavalo, para ser atrelado a uma
carroça e tornar-se meio de transporte, tivesse de deixar de ser cavalo.
O estilo elíptico, aí, não é usado para abreviar
a comunicação, mas para introduzir, nas passagens abreviadas,
toda sorte de absurdidades que, para ser aceitas, devem permanecer abreviadas,
de vez que explicitá-las é desmascará-las. Esse tipo de
texto serve precisamente ao leitor apressado, que prefere antes deixar-se enganar
do que ter o trabalho de descompactar a mensagem. Usando esse tipo de linguagem,
um escritor pode lhe impingir, em poucas páginas, um número significativamente
grande de erros e confusões que, por sua compactação mesma,
não poderão ser identificados senão mediante o uso de técnicas
lógicas que não estão geralmente ao alcance do leitor típico
a que se dirigem esses textos — o estudante, o militante operário, a
dona de casa, ou mesmo o homem letrado sem treino especial em filosofia.
No texto que estou examinando, D. Marilena, em não mais de doze páginas
e por meio da técnica do absurdo compactado, conduz o leitor a aceitar
mansamente como verdades admitidas pelo consenso acadêmico universal diversas
outras idéias que, uma vez desentranhadas da massa de elipses, se revelam
assustadoramente pueris. Vejamos uma delas.
Segundo D. Marilena, a teoria aristotélica das quatro causas, que privilegia
a causa final, é o reflexo ideológico inconsciente de uma sociedade
aristocrática. A causa final corresponde ao senhor que dá as ordens
do alto do seu castelo, enquanto a causa eficiente, correspondente ao escravo
que mete a mão na massa para transformar a realidade, é relegada
a um humilhante segundo plano. Já a física de Descartes, que reconhece
a importância autônoma da causa eficiente, é também
reflexo inconsciente, mas de uma sociedade mais avançada onde o capitalismo
já aboliu o trabalho escravo.
Enfim,
causa final = inteligência contemplativa = classe dominante.
Em oposição simétrica,
causa eficiente = inteligência
prática = classe dominada.
A analogismo fácil, o esquematismo
barato, dá a essas explicações, mais que uma credibilidade
automática, um tremendo
sex-appeal: de repente, e sem qualquer
esforço, o leitor se sente elevado a um posto de observação
mais alto que o de Aristóteles e Descartes, de onde pode enxergar as
forças sociais que determinaram inconscientemente o curso do pensamento
desses dois filósofos, os quais, coitados, imaginavam ingenuamente estar
descrevendo fenômenos objetivos da realidade quando não faziam
senão ecoar, como bonecos de ventríloquo, o discurso legitimador
dos seus interesses de classe, isto é, respectivamente, da aristocracia
escravagista e da burguesia industrial.
No horizonte mais amplo da contemporaneidade
marilênica, Aristóteles e Descartes já não são
homens conscientes e sábios que têm algo a nos ensinar; são
puros "objetos" de análise, bonecos de mola nas mãos de forças
históricas invisíveis, pacientes psicanalíticos que não
se enxergam e que, por isso mesmo, deixam à mostra o seu subconsciente
ante o olhar superior do analista. Aí descobrimos, desvanecidos, que,
na física aristotélica ou cartesiana,
"temos, portanto, uma teoria geral para a explicação da
realidade e de suas transformações que, na verdade, é
a transposição involuntária para o plano das idéias
de relações sociais muito determinadas. Quando o teórico
elabora sua teoria, evidentemente não pensa estar realizando essa
transposição, mas julga estar produzindo idéias verdadeiras
que nada devem à existência histórica e social do pensador"
(p. 10).
Aqui, novamente, a chave do milagre chama-se elipse. Saltando diretamente de
uma doutrina física ao interesse de classe do qual ela seria uma projeção
inconsciente, D. Marilena omite discretamente o ponto decisivo: se um homem
está pensando sobre fenômenos da natureza física, como se
explica que o interesse de classe, tão alheio ao assunto de seus pensamentos,
se imiscua neles e acabe por determinar o seu curso, de maneira até mais
decisiva do que o objeto sobre o qual discorrem?
Como será que, pensando
por exemplo na embriologia dos gatos ou na lei de queda dos corpos, posso produzir
um discurso que, no fim das contas, nada diz sobre gatas prenhes ou bolas que
caem, mas apenas afirma o direito que minha classe social tem de viver no bem-bom
à custa da exploração das outras classes? Como se dá,
enfim, a "transposição inconsciente"?
Que processos psíquicos,
lingüisticos, neurológicos, determinam que todo teórico do
que quer que seja nunca saiba precisamente do que está falando, mas sempre,
imaginando falar de animais, de mares, de montanhas, de pedras ou de anjos,
esteja sempre falando de outra coisa, sem ter disto a menor idéia? Por
quais mecanismos causais se produziu esse monstruoso fenômeno do equívoco
universal, do qual veio libertar-nos D. Marilena?
Basta fazer essa pergunta para verificar que a transposição alegada,
longe de ser um processo óbvio e patente que pode ser elidido na exposição
sem prejuízo para a compreensão do assunto, tem, ao contrário,
todas as características de um fenômeno mágico, produzido
por meios desconhecidos, sutis e imponderáveis, e que, em vez de poder
explicar o que quer que seja, é ele próprio que requer explicação.
Entre a premissa e a conseqüência, entre o fenômeno e sua alegada
explicação, medeia todo um vasto território de hipóteses
arriscadas e pressupostos imprudentes, cuja veracidade implícita o leitor
aceita sem exame, levado pelo poder hipnótico do discurso elíptico.
Nos exemplos citados, a lista dos pressupostos elididos inclui, ademais, alguns
nexos históricos que, uma vez trazidos à luz, se mostram assustadoramente
falsos. Por exemplo, se é a posição social do sujeito que
determina sua ideologia inconsciente, por que raios a ideologia da aristocracia
agrária deveria estar impregnada logo no inconsciente de Aristóteles
— membro de uma família de funcionários urbanos —, e não
no de Descartes, que era precisamente um senhor feudal?
E, se isso já
não fosse absurdo suficiente, como poderia o senhor feudal René
Descartes não apenas ecoar inconscientemente o discurso da classe capitalista
industrial, mas ainda fazê-lo em pleno século XVII, dois séculos
antes do surgimento do capitalismo industrial? Como pode a ideologia de uma
classe impregnar-se com tamanha força no inconsciente de um indivíduo
antes mesmo de que essa classe venha a existir?
É só a mágica da argumentação elíptica
que permite a D. Marilena, num texto tão breve, fazer o leitor engolir
tantas mentirinhas tolas e ainda passar por uma séria expositora do assunto.
Principalmente se o leitor não leu os expositores originais da teoria
da ideologia, Marx ou Mannheim, que decerto a aplicavam com muito mais comedimento
e nunca pretenderam ver em toda ciência antiga uma transposição
rasa e cretina de ideologias de classe.
Os trechos que citei neste estudo não são, lamentavelmente, exceções,
faux pas, fraquezas acidentais de autores que, no mais, permanecem sérios
e respeitáveis. Essas amostras são características do estilo
de Birman e Marilena. Não há uma página desses autores
onde não se possa colher exemplos de pressupostos absurdos meticulosamente
elididos. E seria uma felicidade imaginar que somente esses dois escrevem assim,
mas o fato mesmo de que seu estilo expositivo não suscite a menor reação
de escândalo nos meios acadêmicos, de que ele seja aí aceito
como um modo normal de falar e mesmo como uma realização louvável,
já bastaria para mostrar a profunda corrupção intelectual
que domina esses ambientes.
Eu poderia aqui enumerar três dúzias
de intelectuais acadêmicos de alto prestígio que escrevem igualzinho
a Marilena e Birman. Gilberto Vasconcellos, Leandro Konder, José Miguel
Wisnik, Emir Sader, Muniz Sodré, Adauto Novaes, são alguns dos
que se afeiçoaram às elipses enganosas ao ponto de tornar-se viciados.
Em todos esses casos, a motivação é claramente política,
e política esquerdista.
Isto não quer dizer, decerto, que as esquerdas
tenham o monopólio do estilo elíptico; apenas, no momento, a hegemonia
quase imperial que desfrutam nos meios culturais e jornalísticos lhes
infunde aquela segurança que abole todos os escrúpulos, ao passo
que os poucos direitistas remanescentes, acuados pelo número e ferocidade
dos adversários, recuam para uma atitude mais sóbria e cuidadosa,
argumentando em geral com um certo rigor: comparar uma análise econômica
de Roberto Campos com uma de Emir Sader é comparar uma aula com uma fofoca.
É certo também que todos os autores mencionados são pessoas
de certo talento, pois a arte do sofisma elíptico exclui, por sua sutileza,
os lerdos e mocorongos.
Tecnicamente falando — e digo isto porque pode interessar aos estudiosos —,
todas as elipses enganosas correspondem aos silogismos
erísticos
da dialética aristotélica (silogismos que tomam como universalmente
aceitas certas premissas que não são de maneira alguma universalmente
aceitas), montados porém na forma retórica do
entimema
— o silogismo com premissa oculta. Há nisso alguma arte, deve-se reconhecer.
A força persuasiva da mistificação elíptica reside,
em grande parte, na dificuldade de sua descompactação, sem a qual
as premissas absurdas permanecem protegidas na reconfortante meia-luz do implícito
e não-declarado.
Quando, uns anos atrás, escrevi que "uma lei
constitutiva da mente humana concede ao erro o privilégio de poder ser
mais breve do que a sua retificação", era precisamente isso o
que eu tinha em vista. A única maneira de romper a mágica da mistificação
elíptica é explicitar o implícito, recuperar os trechos
saltados, reconstituir os passos lógicos omitidos; e isto, além
de dificultoso e, para o leigo, quase irrealizável, tem ainda o inconveniente
de não se poder expor senão em trabalhos extensos — bem mais extensos,
pelo menos, do que os textos analisados.
O mistificador beneficia-se, assim, não só da distração
e do despreparo técnico de seus leitores, mas também do efeito
dissuasivo do comodismo humano, bem como das limitações de espaço
que, na imprensa, tornam geralmente inviável a publicação
das análises e refutações que reduziriam a pó o
renome científico de centenas de mandarins acadêmicos. Tudo conspira,
enfim, para que a mentira permaneça oculta e protegida numa obscuridade
cúmplice.
Não é de se desprezar, nesse panorama, o peso
do fator "repetição": quanto mais exposto a certas elipses sofísticas
padronizadas, mais o público as aceita como argumentos probantes e definitivos,
e isto de maneira cada vez mais rápida e automatizada — donde vem
ainda um efeito colateral: cada vez é preciso menos talento para enganar
o público e a cada geração os compactadores de sofismas
podem se permitir ser cada vez mais tolos, confiados no adágio fatal
de que
un sot a toujours un plus sot qui l’admire.
A confusão generalizada, a ausência de clareza e seriedade nos
debates intelectuais, jornalísticos e parlamentares, a hesitação
e a nebulosidade em todas as decisões, a atmosfera de escorregadia indefinição
e de fuga às responsabilidades — tudo isso pode ser imputado, sem injustiça,
à praga da argumentação elíptica disseminada entre
os intelectuais brasileiros. Eles podem continuar enganando a muita gente por
muito tempo, e daqui do meu posto de observação, sem a menor esperança
de reconduzi-los ao caminho reto, só o que me cabe é transmitir
a cada um deles o aviso de que já não está a salvo de todo
exame crítico.
Posso ser uma voz solitária, posso ser um joão-ninguém,
mas isto não muda em nada o testemunho fundamental:
Eu sei quem você
é e vi o que você fez.
No entanto, mais grave do que o estado atual de coisas é que, sendo
os mestres da persuasão elíptica os senhores do mundo acadêmico
no momento, é inevitável que seus alunos tomem o seu
modus
argumentandi como modelo principal senão único da aquisição
de autoridade intelectual, e gastem os melhores anos de suas vidas no esforço
de aprender a imitá-lo, galgando etapas na ascensão profissional
à medida que se impregnam dos cacoetes de seus professores e tornando-se,
por antecipação, os mistificadores das gerações
vindouras.
Ou rompemos agora essa maldita cadeia de transmissão, ou dia virá
em que o povo brasileiro, para ser persuadido de qualquer bobagem, não
exigirá qualquer razão mais séria do que o estalar do chicote
da Tiazinha.
05/04/99