quarta-feira, 6 de março de 2019

Ricupero caiu por excesso de pureza.Será?

"Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde"

Ricupero caiu por excesso de pureza

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Erramos: 07/09/94

Está errada a legenda desta reportagem, que identifica Rubens Ricupero como "ministro demissionário da Economia". Ricupero deixa o ministério da Fazenda.

Ricupero caiu por excesso de pureza

Foi uma injustiça demitirem Rubens Ricupero. Deviam é ter demitido a Rede Globo. Deslizes morais, numa conversa em "off", quem não os comete? Mas a "falha eletrônica" de que foi vítima o ex-ministro –uso de suas próprias palavras no discurso de despedida– é coisa imperdoável para a Rede Globo. Transmitir toda a conversa! Onde está o padrão de qualidade da emissora?

Como todo mundo, levei um choque ao ler a transcrição da conversa entre Ricupero e Monforte. Como todo mundo, eu gostava de Ricupero. Sua beatitude o punha acima de qualquer suspeita. O sotaque simples, os olhos azuis, o cabelinho branco, o perfil magro, a fé: tínhamos um santo no ministério.

Funaro era mais um pastor evangélico, um mártir; tinha a dureza dos heróis, a pertinácia dos perseguidos, o olhar fixo dos visionários. Ricupero era uma versão católica, cordata, modesta e pura do salvador da pátria.

Lendo o que disse a Monforte, o choque foi enorme. Sob as vestes de beato, entreviu-se o cínico, o duende, o sujo, o pagão. Mas será que não estamos exagerando um pouco?

Quero entender Ricupero, estou decidido a desculpá-lo. Desconfio que ele se perdeu pela pureza da própria alma. Pecou –mas quem peca, por definição, é inocente.

Sem ironia: imagino um homem digno, reto, para quem a santidade não é uma palavra vazia, arremessado de repente ao Ministério da Fazenda. Imagino, além disso, que esse homem não é nenhum idiota, que sabe das imensas pressões eleitorais em curso, do entrechoque dos interesses "reais" em jogo. Imagino também que, após uma carreira discreta e abnegada, esteja experimentando um súbito contato com a mídia.

Suas declarações em "off" foram ouvidas pelo público e transcritas na Folha (o "Estado de S. Paulo" só as reproduziu no dia seguinte). Cabe aqui uma explicação quanto ao fenômeno do "off".

"Off", ou "off the records", é como se chamam as declarações impublicáveis de qualquer autoridade, que não obstante merecem ser ditas a um jornalista. De certo modo, são o grande tesouro de que dispõe um ministro ou presidente.

Não há quem resista à tentação. A autoridade, exausta de manter ternamente a máscara oficial, abre repentinamente um segredo valioso ao jornalista que a cerca. Valoriza-se, assim. Tem a oportunidade de encetar um diálogo inteligente com alguém.

O "off" se torna a vingança da autoridade contra uma imprensa que publica tudo. Torna-se também a vingança de uma autoridade forçada pelas conveniências políticas a ser mais burra do que é. Envaidece ao mesmo tempo a inteligência do jornalista e a inteligência da fonte.
Cria-se então uma comunidade ilusória entre pessoas "experientes", "vividas", que sabem como o mundo funciona. Na conversa com Monforte, Ricupero demonstrou plenamente que sabe como o mundo funciona. Sabe que a Globo pode apoiar FHC usando o ministro da Fazenda como álibi da operação.

Claro que, encantado pelo poder, Ricupero caiu ingenuamente no gozo do "off". Falou o que não devia. Mas devo corrigir a frase: ele não estava encantado pelo poder, ou só em parte. Estava, o que é normal, preservando com Monforte a própria inteligência, antes de uma entrevista oficialesca. Vaidade? Não. Amor-próprio, tingido de realismo maquiavélico. Mas como ele não é nenhum Maquiavel, desafortunou-se quando suas afirmações foram divulgadas.

Repito: por excesso de pureza é que Ricupero se perdeu. Foi inteligente no momento errado. Foi malicioso num momento em que um verdadeiro malicioso ficaria calado. Não aguentou o cinismo que dele era exibido.

A Rede Globo, por sua vez, é cínica até o fim. Basta ler a coluna diária de Nelson de Sá para perceber o grau de manipulação eleitoreira, de descompromisso com os fatos, de desonestidade e de oficialismo nos noticiários da emissora. É simplesmente nojento. No episódio Ricupero, tudo foi tratado no condicional: o ministro "teria dito que..."

É o pior jornalismo da televisão brasileira; lembro-me de comentaristas econômicos ficarem negando choques e congelamentos quando todo mundo sabia que eles iriam acontecer.

A Globo é uma fábrica de mentiras; fábrica burra, à medida que nega até o último momento aquilo que acontece e, no dia seguinte, tem de dar conta daquilo que negou na véspera.

Manipulação evidente pró-Collor, pró-FHC, pró-Plano Real. Mas não acho que a Globo deva ser encarada como "demônio". O fato é que as pessoas assistem à Globo.

Deveriam ter deixado de acreditar em Alexandre Garcia e Cid Moreira há muito tempo. Mas as pessoas acreditam. Querem acreditar. Assim como querem votar em FHC. Os espectadores da Globo não são inocentes, não são cretinos manipulados pelo poder. Assistem a um noticiário que sabem dirigido à imbecilidade brasileira.

Não é que vão votar em FHC dirigidos pela Globo. Antes de escolher FHC já escolheram a Globo. Pensar dói, disse um filósofo. A Globo nos presta esse grande serviço, o do emburrecimento coletivo, e graças a isso podemos ser burros em paz, votar em quem ela manda, aprovar o real.

Claro que o real é ótimo. Não quero fazer aqui a defesa da candidatura Lula.

As opções de voto são respeitáveis em si. Pode-se votar em FHC sem ser um manipulado pela Globo, pode-se votar em Lula sabendo dos riscos que isto implica. E é claro que toda população brasileira quer o fim da inflação.

Mas também me parece claro que o Plano Real foi milimetricamente adotado com vistas às eleições presidenciais. Teoricamente, o regime das URVs deveria ter sido prolongado até que as "condições prévias" (saneamento das contas públicas, reforma na Previdência, privatização) fossem decididas pelo Congresso.

Não. Inventou-se uma nova moeda "estável" antes dessas reformas, simplesmente porque uma precária estabilidade de preços viria a anteceder as eleições presidenciais. Isso é óbvio, a Rede Globo martela essa obviedade, e o ex-ministro Ricupero também.

Ridículo dizer que no caso do Plano Real é importante obter o apoio, a mobilização do cidadão comum. Não é um plano que exija fiscais como os de Sarney. O cidadão precisa ser mobilizado apenas para votar em FHC.

O que é óbvio, à medida que Lula não demonstrou ter respostas concretas para a inflação. O Plano Real tampouco, mas parece ter.
As ilusões globais valem mais que a realidade. O pretenso plano de governo de FHC foi brandido, no horário eleitoral, sob a forma de um livro grosso e consistente. A Folha denunciou a farsa: sob a capa brilhante, escondia-se um miolo de páginas de livro esotérico, que falava do poder anímico dos objetos. Ou seja, contava casos em que as coisas andam por si mesmas. Carros dão partida sozinhos, enceradeiras funcionam sem ordem humana.

É a força inercial das coisas. Metáfora do conservadorismo de uma campanha fernandohenriquista onde, para garantir o progresso e a justiça social, é preciso aliar-se aos que mandam, ACM, Marco Maciel, oligarquias. FHC proclama a todo custo "a força das coisas": é assim, o Brasil é assim, vamos aceitar.

O nome de "real" para o plano econômico foi bem dado. Sejamos realistas, prometamos o impossível. Lula promete o mais-que-impossível: a utopia da revolta. FHC fica no "realismo".

Mas em matéria de "realismo" foi o ex-ministro quem deu a última palavra. Foi "realista" demais.

Texto Anterior: ENTRELINHAS

"Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde".





MANCADA - Quem tinha antena parabólica e via o canal 23 por volta das 20h30 do dia 1º de setembro acompanhou um acontecimento histórico: depois de participar do Jornal Nacional, o então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, se preparava para gravar uma entrevista para o Jornal da Globo. Enquanto as câmeras eram ajustadas, Ricupero conversava com o jornalista Carlos Monforte. Mal sabia ele que o papo estava sendo captado pelas parabólicas. Descuidado, declarou: "Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde".







REPERCUSSÃO - Três dias depois da célebre mancada, Ricupero afastou-se do governo Itamar Franco. Ciro Gomes assumiu o posto.



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