quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O Globo – Acesso mais fácil a armas pode ampliar a já alta taxa de homicídios / Editorial


Segundo dados do Ministério da Saúde, a cada 14 minutos uma pessoa é morta a tiros no Brasil.

Sob qualquer ângulo, os números são estarrecedores. Dados do Datasus (Ministério da Saúde) mostram que, entre 2001 e 2016, 595.672 pessoas foram assassinadas por armas de fogo no Brasil. Significa que, a cada 14 minutos, uma pessoa é morta a tiros em algum lugar do país. Por ano, são 37.229. Cenário de guerra. Essa matança representa hoje cerca de 70% do total de homicídios, percentual que vem aumentando desde 1980, quando equivalia apouco menos da metade de todos os assassinatos (44%).

Impossível não relacionar essa escalada ao aumento do número de armas em circulação, especialmente quando se sabe que é a partir dos anos 80 que o tráfico se instala nas principais cidades do Brasil, trazendo com ele um arsenal que faria explodir os índices de criminalidade nas décadas seguintes. Em quase 40 anos, essa catástrofe que teve início nos municípios mais industrializados do Sudeste se espalhou para outras regiões. No Norte/Nordeste, a situação é alarmante. Em 2001, as duas regiões respondiam por 26% de todas as mortes por armas de fogo, enquanto o Sudeste concentrava 57%. Quinze anos depois, houve uma inversão. No Norte/Nordeste, o percentual saltou para 55%, ao passo que, no Sudeste, caiu a 25%.

Não é sensato dizer que o Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigorem 2004, foi inócuo nesse sentido. É verdade que, apesar dele, o número de homicídios no Brasil continuou subindo, mas por outros fatores — e são muitos os que influenciam o aumento da criminalidade. Estudos como o Mapa da Violência mostram que os assassinatos teriam crescido ainda mais se fosse mantido o ritmo de expansão pré–Estatuto. Portanto, a legislação de controle de armas conseguiu frear essa disparada, o que não é desprezível.

Nesse contexto, preocupa o desmonte do Estatuto que vem sendo posto em prática — e, diga–se, não é de hoje. Cumprindo uma de suas principais promessas de campanha, o presidente Jair Bolsonaro acaba de flexibilizar, por decreto, aposse de armas. E o governo já anunciou que o próximo passo será reduzir as exigências também para o porte.

De fato, existem países com número bem maior de armas e índice de homicídios infinitamente menor. Mas a nossa realidade não é a do Canadá, por exemplo. A do Brasil está escancarada nos números dramáticos do Datasus. Um estudo do Ipea revelou que o aumento de 1% na quantidade de armas eleva em até 2% a taxa de homicídio. Dessa forma, facilitar o acesso à posse e ao porte tende a ampliar essa tragédia. É só uma questão de tempo.


O Globo – Decreto das armas pode aumentar arsenal do crime


Por Bruno Abbud

CPI que investigou o comércio ilegal de material bélico já mostrou que 86% das armas encontradas com bandidos foram adquiridas dentro dos requerimentos legais e, posteriormente, desviadas para delitos.

O provável aumento da circulação de armas de fogo nas mãos de cidadãos comuns, resultado possível do decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 15 que flexibilizou a posse, pode incrementar o arsenal do crime. Ao menos é isso que afirmam especialistas que analisam a segurança pública.

Estudos mostram que boa parte das armas em poder de criminosos tem origem legal. Finalizada em novembro de 2006, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o comércio ilegal de material bélico no Congresso Nacional mostrou que 86% das armas encontradas com bandidos foram adquiridas legalmente e posteriormente desviadas para o crime.

DADO ATUAL

Para o ex–comandante da PM no Rio, coronel Ubiratan Ângelo, que também é pesquisador da ONG Viva Rio, esse dado continua atual:

— O decreto pode facilitar a ida das armas para as mãos de bandidos, porque o criminoso vai onde a coruja dorme. Se aumenta a comercialização de armas, aumenta também a ambição dos bandidos, que buscam casas de quem tem armas, além de estoques de armas das polícias e de empresas de segurança privada.

Segundo o especialista, a maior parte das armas apreendidas que têm origem legal é de pequeno porte, como revólveres e pistolas.

— Fuzis têm origem ilegal. A maioria das armas apreendidas é de revólveres legais.

Ângelo também ressalta que, em muitas das 134 mortes de policiais do Rio em 2017, os assassinos levaram a arma da vítima:

— Essa arma foi para o crime. O policial, que é treinado, entrou nessa estatística. Imagine o cidadão comum.

A CPI que investigou o tráfico de armas também constatou que de um lote de 10.549 armas apreendidas no Rio de Janeiro entre 1998 e 2003, 74% haviam sido compradas por pessoas físicas legalmente e 25% por empresas de segurança privada.

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Guaracy Mingardi alerta para o fato de que mortes violentas no Brasil ocorrem principalmente por armas de pequeno porte.

— A maior parte dos homicídios é por calibre 38, 380. Não é fuzil nem metralhadora. É uma arma que alguém comprou há 10, 20 anos e que acabou caindo na mão do criminoso porque foi roubada ou desviada.

JÁ FORAM LEGAIS

Segundo ele, armas usadas em homicídios e crimes comuns no país foram, em algum momento, armas legais. Esse movimento, da legalidade para o crime, pode ser facilitado pelo decreto assinado por Bolsonaro, diz Mingardi.

— Aos poucos isso vai acontecer. Não será amanhã, mas daqui a cinco, dez anos. Uma boa parte vai acabar caindo nas mãos de criminosos. O próprio Bolsonaro teve uma arma roubada no passado — diz ele, acrescentando:

O jurista Wálter Maierovitch, especialista em criminalidade transnacional, afirma que o decreto assinado por Bolsonaro pode levar mais armas às mãos do crime.

— É lógico que pode (facilitar armas nas mãos de bandidos). Vai colocar mais armas no mercado e vai dar mais facilidade de ter subtração de armas. Imagine alguém que pode ter até quatro armas. Agora imagine dez casas, dez moradores e quatro armas para cada um. Seria um arrastão de armas. O governo faz de conta que essas armas não vão gerar violência, mas vão.

“Se aumenta a comercialização de armas, aumenta também a ambição dos bandidos, que buscam casas de quem tem armas, além de estoques de armas das polícias e de empresas” _ Coronel Ubiratan Ângelo, ex–comandante da PM do Rio.


Valor Econômico – Davos e a sustentabilidade / Artigo / Marina Grossi


O ano de 2019 chegou com vários desafios, inúmeros questionamentos e uma certeza: chegaram ao fim os dias em que as empresas e governos poderiam pensar apenas em termos de seus resultados, sem avaliar causas e consequências socioambientais. Mais que isso, os próprios resultados agora dependem diretamente dessa variável. E a situação não é diferente para o poder público ou para a sociedade civil. A questão da sustentabilidade transcende o mundo acadêmico, invade sem cerimônia as principais salas de reunião de executivos, além de ser uma variável competitiva para os países conquistarem melhores posições na nova geopolítica global.

As empresas já perceberam valor nisso e investem. Estudo do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) lançado no final de 2018, apontou que suas empresas associadas investiram US$ 85,8 bilhões nos últimos dois anos em medidas que contribuem para a redução de emissões de suas unidades de produção. A maior parte envolveu o uso de tecnologias de eficiência energética, otimização de processos e busca por fontes energéticas de baixo carbono. Juntos, esses projetos foram responsáveis pela redução de 212,1 milhões de tCO2 e no período, o que corresponde a um volume equivalente a 27% da meta total de redução assumida pelo Brasil no Acordo de Paris até 2025.

Sustentabilidade é hoje sinônimo de bons negócios no mundo empresarial e também no político. A boa notícia é que no caso do Brasil já saímos na frente em relação aos outros países. Não só temos ativos ambientais ímpares, como podemos utilizar a própria preservação das nossas florestas como variável de competitividade, tornando–as modelos para o mundo todo, com técnicas avançadas de manejo, já comuns por aqui e pouco conhecidas lá fora. Além disso, temos energias renováveis em abundância e cada vez com custo menor e mais competitivo, sem exigir subsídios e oferecendo oportunidades inúmeras de investimentos.

A sustentabilidade é importante para os países obterem melhores posições na nova geopolítica global

Por isso mesmo há uma atenção especial à primeira viagem e primeiro pronunciamento internacional do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante a reunião anual do Fórum Econômico Mundial (WEF) em Davos, na Suíça. Ele estará entre três mil tomadores de decisões da política, negócios e ciência. Ao lado do seu superministro da economia, Paulo Guedes, desperta curiosidade sobre o que terá a dizer em relação a políticas de desenvolvimento sustentável do país, cumprimento do Acordo de Paris, combate ao desmatamento e ampliação da exploração da rica biodiversidade nacional.

Elencar as vantagens brasileiras no combate às mudanças climáticas é tão importante quanto apontar as oportunidades de investimentos em saneamento básico. Mostrar ao mundo os esforços que nossas empresas vêm fazendo para aumentar sua eficiência no uso da água, o crescimento da matriz energética renovável, e as boas experiências na abordagem da biodiversidade e do reflorestamento podem atrair investimentos e ajudar a "vender muito bem o País". Há um gargalo de investimentos em infraestrutura no Brasil, e é a hora de mostrar esse espaço para atrair recursos e mudar cenários que fazem com o que ainda tenhamos um pé no século XIX, como no caso da falta de acesso ao saneamento básico, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. E tudo isso é sustentabilidade.

Uma fala internacional em um espaço tão seleto e qualificado como Davos funciona como uma plataforma prática para o Brasil explicar seus planos na área comercial, fiscal, digital, de inovação, de produtividade, desestatização e combate à corrupção. E tudo isso está diretamente conectado à sustentabilidade. Afinal, é ingenuidade pensar que esse conceito não seja utilizado ora como barreira comercial, ora como oportunidade de investimento por governos e empresas para a tomada de decisões.

Cabe ressaltar que as empresas europeias foram as responsáveis por mais da metade dos empregos gerados no Brasil por investimento greenfield de 2006 a 2015. A União Europeia é o segundo maior mercado de produtos agrícolas brasileiros e vêm de lá os principais investidores em infraestrutura nos últimos anos. Por outro lado, sabemos que os negócios gerados a partir da nova economia podem resultar em US$ 26 trilhões na forma de benefícios econômicos até 2030, criando mais de 65 milhões de postos de trabalho e evitando 700 mil mortes prematuras por poluição do ar, segundo análise do New Climate Economy. É preciso conjugar essas premissas com nossas demandas visando um futuro sustentável, que preserve as nossas riquezas naturais, mas que garanta um salto nos indicadores de qualidade de vida da população.

Além disso, temos problemas urgentes a resolver: Os números do desmatamento seguem na contramão do esforço de restauração. De acordo com o Instituto Imazon, a derrubada da floresta cresceu 40% entre agosto de 2017 e julho de 2018. Em 12 meses, foram perdidos 300 mil hectares – o que se pretende repor no principal projeto de plantio de árvores na Amazônia. Mais do que ativismo ambiental, isso é perda de recursos naturais e financeiros para o Brasil. É preciso pensar em medidas para conter essa sangria.

Não se trata mais de investir em saneamento ou energia renovável; em biodiversidade ou combate ao desmatamento; em reciclagem de lixo ou limpeza dos rios e oceanos; em exploração de petróleo ou reflorestamento. Tudo isso junto faz parte de um universo de possibilidades e novos negócios, sendo feito por empresa, sociedade e governo, e gerando lucros. Não podemos desperdiçar a chance de mostrar ao mundo nosso potencial, o acervo de experiências bem–sucedidas de nossas empresas e as enormes possibilidades de novos negócios que pode ensejar uma visão estratégica aliando desenvolvimento e sustentabilidade.

Marina Grossi é presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) desde 2009 e membro do CPLC (Carbon Pricing Leadership Colalition) do Banco Mundial desde 2018.