Aldemario Araujo
Castro
Advogado
Mestre em
Direito
Procurador da Fazenda
Nacional
Professor da
Universidade Católica de Brasília
Brasília, 29 de março
de 2017
A Constituição
brasileira de 1988, uma das mais avançadas do mundo, festejada como exemplo de
uma carta política comprometida com profundas transformações sociais, estabelece
que são objetivos da República Federativa do Brasil: a) construir uma sociedade
livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e d)
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o). Esses fins devem ser buscados, inclusive na
formulação de políticas públicas, sob importantes fundamentos, entre eles: a) a
dignidade da pessoa humana e b) os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa (art. 1o).
“A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (22) por
231 votos a favor, 188 contra e 8 abstenções o texto-base do projeto de lei que
autoriza o trabalho terceirizado de forma irrestrita para qualquer tipo de
atividade./Os principais pontos do projeto são os seguintes: - A terceirização
poderá ser aplicada a qualquer atividade da empresa. Por exemplo: uma escola
poderá terceirizar faxineiros (atividade-meio) e professores (atividade-fim). -
A empresa terceirizada será responsável por contratar, remunerar e dirigir os
trabalhadores. - A empresa contratante deverá garantir segurança, higiene e
salubridade dos trabalhadores terceirizados. - O tempo de duração do trabalho
temporário passa de até três meses para até 180 dias, consecutivos ou não. -
Após o término do contrato, o trabalhador temporário só poderá prestar novamente
o mesmo tipo de serviço à empresa após esperar três meses”
(https://goo.gl/1ficpE) (https://goo.gl/6pfLEn).
A
aprovação do “PL da terceirização” provocou, como era de se esperar, fortes
reações contrárias. As manifestações favoráveis também foram numerosas e
enérgicas. Importa, pois, identificar se o projeto aprovado está alinhado com os
objetivos constitucionais de redução de desigualdades sociais ou, ao revés,
milita no sentido agravar as condições socioeconômicas de dezenas de milhões de
trabalhadores.
Para chegar, de forma minimamente racional, a um dos dois
resultados acima cogitados vamos realizar um simples exercício mental.
Imaginemos um empresário que pretende constituir uma empresa de transporte de
bens móveis. Para tanto, entre providências de várias ordens, o dono do negócio
precisa dispor da força de trabalho de 30 (trinta) motoristas.
O
caminho natural ou tradicional a ser trilhado consiste na contratação direta,
mediante vínculos jurídicos regidos pela legislação trabalhista, desses 30
(trinta) trabalhadores. Vamos supor que o custo mensal de cada empregado,
considerando o salário e encargos de diversas naturezas, atinja o patamar de 3
(três) mil reais.
A
terceirização coloca uma alternativa de contratação de mão-de-obra para o
referido empresário da área de transportes. A solução seria fazer um ajuste com
uma “empresa prestadora
de serviços a terceiros”, como tratada no projeto de lei aprovado pela Câmara
dos Deputados. Trata-se de uma “pessoa jurídica de direito privado destinada a
prestar à contratante serviços determinados e específicos”. Em outras palavras,
essa empresa fornecerá mão-de-obra para a contratante.
Ocorre que só faz sentido a
alternativa da terceirização, em relação à contratação direta dos trabalhadores,
se o custo dessa contratação for menor. Se, por hipótese, a contratação direta
envolve um custo de 3 (três) mil reais por trabalhador, a alternativa via
terceirização precisa apontar para um custo por trabalhador inferior ao patamar
mencionado.
A
empresa de terceirização, fornecedora de mão-de-obra, somente poderá oferecer um
custo inferior por trabalhador se praticar um salário menor, bem menor, do que
aquele que seria pago na contratação direta pela empresa de transporte.
Graficamente, teríamos algo assim:
CONTRATAÇÃO DIRETA
|
TERCEIRIZAÇÃO
| |||
Salário
1500
|
Encargos
1500
|
Salário
1200
|
Encargos
1200
|
Lucro
400
|
Total
3000
|
Total
2800
|
Percebe-se, com facilidade, a fixação de uma tendência de longo
prazo na economia voltada para a redução da massa salarial. Trata-se de uma
engenhosa fórmula de redução do peso dos salários no conjunto da atividade
econômica e a apropriação da diferença resultante, ao menos em parte, como
capital.
Obviamente, não existe a pura e simples supressão de direitos
trabalhistas no âmbito dessa experiência de terceirização. O que ocorrerá, ao
longo do tempo, é a já referida redução do estoque de salários no conjunto da
economia e a clara precarização das relações de trabalho. Essa precarização
decorre, além da diminuição das remunerações, da degradação das condições de
trabalho conduzida por um tipo de empresa com altos índices de rotatividade e de
encerramento irregular de atividades (deixando pendências trabalhistas
consideráveis).
O
aumento da “pejotização” é outra clara consequência da aprovação do “PL da
terceirização”. Esse termo aparece na jurisprudência especializada para designar
a contratação de serviços pessoais, exercidos por pessoas físicas com
subordinação, continuidade e onerosidade, mas realizada por meio de pessoa
jurídica constituída especialmente para essa finalidade. Assim, são disfarçadas
ilicitamente as efetivas relações de emprego e os direitos trabalhistas
literalmente desaparecem. Embora não autorize diretamente a “pejotização”, o
projeto aprovado cria um ambiente nitidamente favorável a adoção de todos os
expedientes, lícitos e ilícitos, voltados para redução de direitos trabalhistas
e encargos sociais.
Outra possível consequência do projeto aprovado poderá ser
sentida a médio e longo prazos. Com efeito, os índices de encerramento irregular
de atividades por parte de empresas terceirizadoras (a “empresa prestadora de
serviços a terceiros”) são altíssimos. Perseguindo uma redução imediata de
custos (salários e encargos), os empresários podem perder de vista os
consideráveis riscos de “pagamento dobrado” por intermédio da responsabilidade
subsidiária expressamente consagrada no projeto aprovado (“A empresa
contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas
referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, e o recolhimento
das contribuições previdenciárias observará o disposto no art. 31 da Lei nº
8.212, de 24 de julho de 1991”).
Eventualmente, existirá um ou outro aspecto positivo e
secundário com a terceirização relacionado com a especialização ou
aproveitamento mais intenso de certas funções laborais. No cômputo geral, os
malefícios da terceirização são evidentemente bem mais relevantes que algumas
vantagens pontuais.
A
repentina aprovação do “PL da terceirização” não é um fato isolado. Trata-se de
mais um capítulo da novela de terror encenada pelo governo
Temer-Meirelles-Padilha contra os mais lídimos interesses da grande maioria da
população brasileira, notadamente os trabalhadores.
Recentemente, tivemos a
aprovação da Emenda Constitucional n. 95, de 2016 (“Novo Regime Fiscal”). Essa
medida representa o instrumento mais forte de arrocho fiscal contra as despesas
de cunho social jamais visto na história brasileira (https://goo.gl/au2ZeS).
Outra clara demonstração de desprezo pelos segmentos mais sofridos da população
brasileira está muito bem representado numa “Reforma da Previdência”
profundamente injusta e draconiana (https://goo.gl/MXI94k).
Curiosamente, todos esses movimentos são realizados em nome da
construção da confiança do “investidor”, notadamente estrangeiro. O surrealismo
do discurso oficial é evidente. A “fada da confiança”, movida por fortes
demonstrações de austeridade na gestão das contas públicas, “tocará” os corações
dos “investidores” em direção ao crescimento econômico !?!?!? A construção de
uma sociedade justa e solidária, baseada numa rede crescente de direitos
sociais, como expressamente previsto na Constituição (arts.
7O, 193 e 194, entre outros), é solenemente
ignorada, inclusive pelo “constitucionalista” instalado no Palácio do
Planalto.
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