Sobre transplante de instituiçõespor Fernão |
Artigo para O Estado de S. Paulo de 12/2/2019
Um dos instrumentos que o ministro Moro quer incorporar ao seu pacote de segurança publica é a “negociação de culpabilidade” (plea bargain)
dos americanos em que o réu abre mão de declarar-se inocente e forçar o
estado a processá-lo e declara-se culpado em troca de uma redução da
pena. Esse dispositivo reduziu em até 90% os processos por crimes
menores nos Estados Unidos.
Nem
sempre, porém a transposição de dispositivos de lá para cá dá
resultado. Em geral importa-se só metade da receita e então os sinais se
invertem. O desastre master chef da modalidade é o de replicar
uma suprema corte encarregada de examinar a conformidade das leis e
ações dos governos e cidadãos com os 7 artigos e 28 emendas da
constituição deles e depois escrever uma constituição com 250 artigos,
104 dispositivos transitórios e 99 emendas. Mas peças bem mais prosaicas
também produzem resultados controvertidos. As delações premiadas, por
exemplo. Elas puseram altos criminosos de colarinho branco ao alcance da
justiça pela primeira vez em nossa história mas logo passaram a ser
instrumentalizadas em disputas da privilegiatura pelo controle do
“sistema”.
Toda
lei é uma faca de dois gumes. Quanto mais forte e pesada a pena mais
valiosa será a isenção e, portanto, mais poder de corromper o aplicador
da lei ela terá. O caso mais emblemático foi aquele tramado entre a
Procuradoria Geral da Republica sob Rodrigo Janot e os irmãos “ésleys”,
da JBS, em que procuradores atuaram a soldo dos bandidos e houve outras
estrepolias grosseiras que resultaram em que a reforma da previdência
fosse abortada, o país fosse condenando a mais dois anos de paralisia e
os agentes das falcatruas nacionais e internacionais do PT que provariam
que Petrobras, Odebrecht e cia. foram coisa de criança saíssem livres,
leves e soltos. É com esse retrospecto em foco que já se instalou o
debate sobre como evitar que a “negociação de culpabilidade”, em vez de apenas acelerar a justiça, que é sinônimo de fazer justiça, não se vá transformar em mais um elemento de comércio de impunidade.
Outros
pontos do pacote de Moro e das propostas pregressas do Ministério
Público são passiveis do mesmo tipo de consideração. A pergunta que
interessa, portanto, é porque, exatamente, instrumentos idênticos
funcionam perfeitamente lá mas não aqui?
Não,
não é “porque os brasileiros são mais corruptos que os outros”. O
problema é muito mais objetivo que isso. A questão chave é a definição
de quem terá o poder de aplicar essas leis, e como. Enquanto forem o
estado e seus agentes os unicos autorizados a decidir o que deve ou não
ser investigado no estado e em seus agentes não tiraremos o pé da lama. O
que mais falta não são mais leis e agentes do estado pouco interessados
em “combater a corrupção” mas sim controle direto do eleitorado sobre o
estado e seus agentes pela simples razão de que só os roubados têm
razões objetivas diretas para exercer essa tarefa sem se deixar
corromper. Eles e somente eles, condicionados pela obrigação de obter
consenso, devem ter o poder de decidir como devem começar e como devem
acabar os processos contra os seus políticos e funcionários corruptos ou
relapsos.
É
esse vetor primário de forças positivo que garante que o sistema
americano opere sempre na boa direção ou, na pior hipotese, tenha o seu
rumo corrigido de qualquer desvio eventual. Como têm a prerrogativa de
retomar mandatos, vetar leis, propor e aprovar as suas próprias a
qualquer momento e decidir a cada quatro anos quais juizes permanecem ou
não com o poder de julgar os outros, os eleitores americanos estão
dispensados de pedir vênia a quem quer que seja para mandar os seus
corruptos se haver com a justiça, emendar sentenças ou ir aperfeiçoando
as suas instituições na exata medida da necessidade. Vivem num estado de
reforma permanente, obra coletiva na qual cabe aos agentes do estado
apenas dar o acabamento técnico ao que o povo decide.
Em meio às milhares de “special elections”
de 2018 para cassações de políticos e funcionários, vetos ou aprovações
de leis, recusa de aumentos de impostos e etc., dois casos afetando o
judiciário chamaram especial atenção. No primeiro, toda a Suprema Corte
do Estado de West Virginia (equivalente aos nossos STJ’s) sofreu recall
porque seus seis integrantes, ou gastaram dinheiro em reformas dos seus
gabinetes consideradas abusivas (trôco comparado aos numeros da
corrupção brasileira), ou foram flagrados usando verbas de combustivel
em viagens de interesse pessoal. No segundo, o juiz Aaron Persky, membro
da Suprema Corte do Estado da Califórnia, sofreu recall por
ter condenado a apenas seis meses de prisão um estudante de Stanford que
estuprou uma colega enquanto estava desmaiada. Um por falta, os outros
por excesso, lá interveio o povo para educar e calibrar a máquina
pública e a justiça às suas necessidades e conveniências.
A
montanha de entulho institucional que tem mantido o Brasil paralisado
foi acumulada pela falta de qualquer controle exterior ao ambito do
estado sobre o estado e seus agentes. E não poderá ser desmontada com
reformas pontuais propostas por eles para eles mesmos. Para isso será
necessário concentrar todas as energias da cidadania em exigir os
instrumentos necessários para impor ela própria a sua vontade aos seus
representantes e servidores, o que começa pela adoção de eleições
distritais puras, as únicas que permitem identificar quem representa
quem e, assim, definir quem tem o direito de demitir quem numa
“democracia representativa”.
Ainda
que comecemos por fazer isso só no âmbito municipal não haverá mais
reversão. O uso dessa arma vicia e o país, reconciliado com a
democracia, ganhará a condição de ir desconstruindo peça por peça o
monturo legislativo no qual está aprisionado na velocidade que convier a
cada segmento da sua população pois, não importa a partir de onde nem
em qual velocidade, a felicidade para uma sociedade consiste apenas em
poder andar sempre para a frente e com as próprias pernas.
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