por Fernão |
Artigo pra O Estado de S. Paulo de 6/12/2016
No
desespero o Brasil agarra-se a duas ilusões: a de que chegaremos ao
fundo do poço por inércia e recomeçaremos a subir e a de que um herói
providencial nos vai levar de volta à superfície.
Não vai. A condição para sairmos da espiral de desastre é deixarmos de nos iludir. A democracia moderna só nasceu, aliás, quando um grupo muito especial de homens deixou de alimentar ilusões quanto à natureza humana e sua especial propensão a se deixar corromper pelo poder. Este “poço” só terá o "fundo" que formos capazes de estabelecer tapando os ralos por onde se drena a riqueza da Nação. Não ha limite para a queda enquanto não o fizermos. O país está "fechado" com quem teve a grandeza de desafiar a impunidade da vertente política do "Sistema".
Prender ladrões é preciso. Sempre. Mas pretender ocultar, com isso, a existência das corporações que controlam o Congresso para cavar e manter privilégios legalizados, entre as quais as do Judiciário e do Ministério Público têm lugar de destaque, e a devastação que esses privilégios produzem nas contas nacionais está longe de ser um procedimento honesto ou mesmo razoavel, pois é esse o rombo que está levando o Brasil ao naufrágio.
Submeter
a Nação, o Estado e todos os seus servidores à mesma lei, essência da
Republica que o Brasil nunca implantou, nos poria no limiar do século 19
que fez disso o mantra sagrado da revolução. Já seria um grande avanço.
Mas é preciso mais. A democracia só se tornou efetiva na virada para o
século 20 quando os primeiros 100 anos de experiência republicana vivida
levaram os Estados Unidos a reincorporar elementos de democracia direta
à fórmula que, pela ausência deles, tinha feito naufragar na corrupção a
primeira versão romana da democracia representativa.
A jovem republica tinha caído refém dos “caciques” políticos que se foram especializando em manipular contra
a hegemonia da vontade popular os elementos estruturais de que os
fundadores tinham aparelhado o novo regime para prevenir que degenerasse
numa tirania da maioria. Eles tinham calculado mal. O que de fato se
instalara fora uma tirania da minoria.
Com a expressão da vontade popular tendo de passar obrigatoriamente pelo filtro das instituições de representação que eles próprios encarnavam protegidos por mandatos de duração pré-determinada que lhes garantiam uma impunidade no mínimo temporária, ficou fácil para os agentes decaídos da política instrumentalizar institutos como o da separação dos poderes ou da independência do Judiciário para colocar-se fora do alcance da lei e locupletar-se vendendo favores ao “big business”.
Com a expressão da vontade popular tendo de passar obrigatoriamente pelo filtro das instituições de representação que eles próprios encarnavam protegidos por mandatos de duração pré-determinada que lhes garantiam uma impunidade no mínimo temporária, ficou fácil para os agentes decaídos da política instrumentalizar institutos como o da separação dos poderes ou da independência do Judiciário para colocar-se fora do alcance da lei e locupletar-se vendendo favores ao “big business”.
Era necessário, portanto, criar instrumentos para divorciar o Estado do Capital, quebrar o domínio absoluto dos “chefões”
sobre os partidos políticos e contornar as instituições que se
antepunham entre a vontade popular e o governo. As respostas, algumas
importadas da Suiça outras feitas em casa, foram empurradas por
campanhas da imprensa e dos reformadores da chamada “Progressive Era”
aos quais viria a aliar-se Theodore Roosevelt, o vice que subiu à
Presidência em 1901 e deu o impulso decisivo à causa. Nada que dois
milhões de manifestantes nas ruas, metade dos quais carregando o mesmo
cartaz, não consigam fazer com mais facilidade, aqui, que derrubar um
governo do PT.
O pressuposto das soluções adotadas é o federalismo que nossa Constituição afirma mas nunca impôs. Se o poder “emana do povo e em seu nome é exercido”
tem de ser exercido onde o povo está: nos municípios para todas as
questões que podem ser resolvidas dentro de um município; nos estados
somente quando ha mais de um município envolvido; na União somente se o
que estiver em jogo for segurança nacional, defesa da moeda ou tratados
internacionais.
O direito ao “referendo”
das leis aprovadas nos Legislativos municipais e estaduais abriu a
primeira brecha na ditadura da minoria. Decorreu naturalmente dele o
direito às leis de “iniciativa” popular. Para “impor” seus novos poderes armou-se a mão do eleitor com a prerrogativa de cassar o mandato do seu representante (“recall”) mediante petições iniciadas por qualquer cidadão. Para executar o “recall” sem parar o país inteiro a cada passo, as eleições (e “deseleições”)
tinham de ser distritais. O controle sobre os representantes de cortes
mais amplos do eleitorado foi proporcionado por eleições primárias
diretas para a escolha dos candidatos dos partidos às eleições
majoritárias. A "legislação antitruste" veio para civilizar o capitalismo.
Faltava “enquadrar” o Judiciário sem, no entanto, enfraquecer-lhe a independência em relação a tudo o mais menos o povo. Instituiram-se as “eleições de retenção” (ou não) dos juizes de direito em suas respectivas comarcas.
Tudo começou com dois solitários estados instituindo o “referendo”, primeiro e a “iniciativa” e o “recall”
em seguida, entre 1898 e 1902. Em 1911 São Francisco e Los Angeles
transpuseram a fórmula para os municipios. Seguiu-se um século inteiro
de aperfeiçoamentos conquistados passo a passo por eleitores armados de
poder de vida ou morte sobre os mandatos dos seus representantes. Hoje
eles decidem tudo. Na eleição de 2016, entre leis de iniciativa popular,
refrendos e “recall” de funcionários, representantes eleitos e
juízes 162 temas diferentes foram decididos no voto além da escolha do
presidente da Republica.
Contra mudanças dessa extensão, sim, valeria negociar até anistias!
Aqui, como nos tempos do Império, Brasilia decide tudo, a começar pela “cláusula pétrea”
de que seus habitantes jamais serão atingidos pelas crises que
fabricam. La ninguém foi demitido e os salários continuam subindo. Na
sua olímpica alienação, Brasilia não tem pressa. Está se suicidando e
levando o Brasil consigo. Agitando a luta contra a corrupção para
desviar a atenção dos privilégios que não admite perder, embarcou-nos
num vôo para o qual o país já não tem autonomia. A economia privada, que
põe comida na mesa, está em pane seca.
É acordar ou morrer!
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